Quem conhece a genética do Amplifest, percebe que o espectro musical nele inserido transcende os genéricos conceitos de “rock music” ou de “heavy metal music”. É muito mais do que isso. É emocional. É físico. É nostálgico, mas muito presente. Mesmo preservando-se despido de pretensiosismo, existe uma apreciada arrogância em impor uma “regra” sem regras. Fazer-se só porque sim está fora da questão, e havendo um motivo por trás, porque não? Porque não inverter a moeda e incutir mais elementos eletrónicos em secções mais pesadas? Ou abraçar o elemento visual a complementar a música? A palavra “catarse” surge tão frequentemente neste fio condutor, que por vezes se perde do tanto que é usada. Mas afinal de contas, o que é uma catarse? Uma purga que se pronuncia ao nível físico e mental. Uma libertação. Um renascer. Muito resumidamente, uma revolução espiritual e individual. Ouve-se tanto estas palavras nos dois pesos pesados do Hard Club porque é tudo isso que o festival representa. Quem nunca se sentiu renascer num Amplifest? Caindo uma árvore sem ninguém a poder ouvir, esta faz barulho? E quem lá estiver, não se sentirá para sempre mudado? É nesse segmento que se avança para este segundo Amplivoices, onde se culminam os dois últimos capítulos da antevisão a interligarem as sonoridades imersivas, fulgurantes e destemidamente humanas, com toda a genética do festival.
Capítulo III - O pesar da alma
Pelican é mais do que um candidato a essa revolução. Quer seja inclinada para um foro individual, ou um grito de guerra perante um mundo imperfeito, a banda justifica-o com uma discografia quase perfeita. Tendo em conta que o recente Nighttime Stories ainda está fresco, não há melhor oportunidade do que esta para ficar a conhecer a banda. Imponente, emotivo, atmosférico, muito focado no build-up sobreposto e a descartar descargas monumentais, Pelican é uma clara representação do que significa catarse. Quanto à dupla canadiana, os Nadja encontram conforto na convergência de panoramas sonoros. Abraçando telas imensas de distorção sedosa com peso em forma de abundância resplandecente, encontra-se neles toda uma beleza somente correspondida pela ferocidade. Procurando uma viagem por panoramas cinemáticos, recheados de textura e exímia composição, Nadja são um destino imperdível.
Apesar de desconhecidos e pouco falados, a outra dupla canadiana Some Became Hollow Tubes une os universos de ambos os Godspeed You! Black Emperor e Thisquietarmy num lustroso sonho inconsciente. Um slowburner que divaga entre as extensivas e pacientes progressões de um marasmo ruidoso, e que culmina numa atmosfera disposta em camadas mas tão abstrata e levitante. Como uma paralisia de sono ou uma experiência de quase morte. Imaginando agora a morte como uma queda livre sem fim, uma vertigem constante e desconexa, sentem-se as pulsações obscuras de uma outra dupla chamada Bliss Signal. A fundir esculturais riffs gélidos, provenientes do génio de James Kelly (Altar Of Plagues/WIFE), com as epilépticas batidas de Mumdance, há toda uma pintura em cromado que pavimenta a dançabilidade destes dois. Basta ver que o seu disco de estreia pela Profound Lore, foi presença imperdível para um dos discos de 2018 da Wav.
Ivo Madeira é mais do que um músico. É uma pessoa que não só sente toda a moldura do Amplifest, como já pertenceu a esse mesmo miolo. Tendo já tocado o festival sob inúmeros projetos desde Névoa a Moase, recorda-se agora a importância de que quer seja no backstage ou na audiência, o festival é acima de tudo, uma família.
Acerca do teu primeiro Amplifest, lembras-te do cartaz? Qual foi o nome que mais te fez querer ir? Qual a recordação que guardas com mais carinho dessa edição?
I - Confesso que não me recordo do nome que me chamou mais para ir ao Amplifest. Já seguia a Amplificasom antes do festival acontecer, quando ainda era um blog e o acompanhava até ao surgimento do festival. Pode ser polémico, mas para mim o mais importante não são as bandas. O mais importante é o festival acontecer. Comprei o bilhete para este ano sem ter ainda uma única banda no cartaz e isso diz muito o que sinto pelo festival. O Amplifest é tudo aquilo em que acredito que a música se pode transformar. Espero não ter fugido à pergunta, mas todos os projetos que passam por lá têm um cariz especial.
No passado já presenciaste a experiência do festival como músico e ouvinte. Diz-nos qual foi a diferença que mais te marcou entre estar no palco e no público.
I - Ter tocado no Amplifest duas vezes, e uma no Post Amplifest, foi das melhores experiências que tive, desde que estou em projectos musicais. É um festival que já tem uma dimensão europeia e ter conseguido tocar nos dois palcos de formas bastante diferentes, foi tudo para mim enquanto pessoa/músico. Só isso já me deixa com o coração cheio.
Quais foram as caras com que te deparaste no backstage que te deixaram mais “starstruck”? Alguma história que queiras partilhar?
I - Logo no primeiro ano em que fui, o alinhamento tinha Amenra, Converge, Stephen O'Malley. No segundo ano, o alinhamento tinha Neurosis, Anna Von Hausswolff, Oathbreaker. O backstage estava recheado das pedras basilares desta “cena musical”. Em 2016, antes de entrar em palco, tive o Colin de Amenra (que ia tocar a seguir com CHVE) a dizer “Come on guys!”. Dás por ti a pensar que este meio é um grupo gigante de amigos e família, onde os teus ídolos são super normais. Isso deixou-me encantado.
Acho que a música é isso, a tua banda não é única, o teu caminho também não. Então porque não tornar isto de como uma família grande se tratasse? Sempre foi assim que cresci neste meio e é assim que quero continuar. O novo projecto do qual faço parte, Ulfberth, estou nele por muito disto que falei - comunidade, amizade e família - e quem sabe ainda nos vemos num próximo Amplifest.
Entre os quatro nomes mencionados no 3º capítulo, qual achas que mais vai espantar o público e com qual delas gostavas mais de tocar?
I - São 4 projetos bastantes diferentes na forma como irão “tocar” o público. Sinto que todos vão espantar todos à sua maneira. Gostava mais de tocar com Bliss Signal por adorar tudo o que o James Kelly faz.
O que define o Ampli para ti? A música, as entrelinhas dos concertos (palestras, mercado, discos) ou as pessoas?
I - Comecei a ir aos concertos da Amplificasom sozinho e o que via ali era uma ligação muito especial entre o público, bandas e organização. Acho que conseguiram passar isso para o festival. (Naquelas horas podias sentir verdadeiramente quem eras. Gostar de música esquisita já não era um tabu). Acho que isso é que define o festival, o espírito que se sente ali. Nada disto poderia existir sem o empenho de duas pessoas, — com empregos normais durante o dia e sem ajudas externas — o que torna tudo ainda mais especial. Obrigado André, Ângelo e a toda a equipa.
Já com retorno marcado para os dias 12 e 13 de outubro, diz-nos qual o nome no alinhamento que tu não PODES perder.
I - Quero muito ver Amenra. São das minhas bandas favoritas e nunca é demais assistir ao ritual deles em palco.
Havendo possibilidades para 2020, qual a banda/projeto que devia contar no alinhamento do próximo ano? Não vale repetentes.
I - Já vimos colaborações no Amplifest — não é algo novo —, mas gostava de ver mais. Concertos com um cariz único, como aconteceu em JUSEPH x MOASE, acho que não só podem enriquecer o alinhamento do festival, como futuramente até podem originar projectos que ganhem vida após o festival. Tendo que escolher um projecto, escolhia Have a Nice Life.
Capítulo IV - A espinha dorsal
Segue-se por fim, o último capítulo do Amplivoices. O seu título tem um motivo de ser. Acima de qualquer outro nome, banda, artista no cartaz, estes aqui apresentados podem muito bem ser os mais fiéis a toda a moldura, corpo e mentalidade que representa não só o Amplifest como também a família da Amplificasom. Emma Ruth Rundle é uma das mais jovens no conjunto. Uma compositora e artista que se tem investido de corpo e alma a pincelar algumas das músicas mais bonitas a surgir nesta geração musical. Tal como o seu último On Dark Horses, cada uma das suas contribuições têm vindo a acrescentar dimensões intermináveis de emoção e individualidade. A par de Emma, os seus íntimos amigos Deafheaven, são outro nome incontestável na cena atual. Apesar do seu último disco Ordinary Corrupt Human Love ser o mais divisivo de todos, não há como esquecer o insuperável impacto que o Sunbather causou nos seus seguidores. Inconfundíveis e tão surpreendentemente influentes, é seguro dizer que os californianos não têm como parar de crescer.
JK Flesh (Justin K Broadrick) é mais conhecido pelas suas marcas como Godflesh e Jesu. mas JK Flesh transpõe-se com uma linguagem completamente diferente. O projeto iniciou-se numa fundação mais baseada na repetição esmagadora e no minimalismo ensurdecedor, no entanto, nos dias que correm, parece que o projeto tem-se elevado cada vez mais em direção ao industrial/hard techno, sempre reminiscente dos 90’s, como já é hábito do Justin. Livres de nostalgia e de qualquer conceito que se reconforte no passado ou num outro momento senão o presente, os belgas Amenra são os mais acariciados na cidade invicta. São simbólicos de certa forma às presenças que o coletivo Church of Ra tem emitido no Porto, mas acima de tudo, é a banda cujo o público do Amplifest mais quer ver (ou rever) neste tão aguardado fim-de-semana. As missas da sua discografia sobrevoam com igual importância, e tal como isso, não há como destacar a tempestade acima do silêncio, pois tudo em Amenra é para se sentir e consumar, de ínicio ao fim.
Entre todos os entrevistados, a Mariana Vasconcelos é a mais jovem e a que foi mais recentemente apresentada ao universo do Amplifest. Não obstante, é a que preserva o papel mais complexo de todos. Para além de fotógrafa, a Mariana também filma, e esta será a sua quarta edição a combinar as dinâmicas de trabalho no festival. Basta observar todo o seu trabalho até hoje, para perceber que faz todo o sentido vê-la operar as lentes nos corredores do Hard Club.
Acerca do teu primeiro Amplifest, lembras-te do cartaz? Qual foi o nome que mais te fez querer ir? Qual a recordação que guardas com mais carinho dessa edição?
M - O meu primeiro Amplifest já foi bastante tarde, em 2014 e na altura ainda estava a descobrir todos estes estilos musicais. Não conhecia praticamente nada mas queria ir fotografar e ver Swans. Dessa edição de 2014 lembro-me de ficar impressionada com a intensidade dos concertos. Nunca tinha fotografado malta a "sentir" tanto em palco. Ficaram para sempre na memória os concertos de Ben Frost, Cult Of Luna e a perda de dignidade por não ter aguentado as duas horas do concerto dos Swans, em pé.
Como pessoa que vive a filmar ambientes de festival (e tantas outras coisas), o que é que encontras no Amplifest nesse contexto, que não encontras em mais lado nenhum?
M - No Amplifest encontro o que tantas vezes falta noutros festivais: emoção crua. Músicos e espectadores a sentirem tudo até ao tutano, sem distrações, sem marcas, sem aquele ambiente de fuga coletiva à realidade.
Quando em modo de filmagem num festival, como é que costumas alinhar o teu processo? Qual o teu objetivo principal quando estás por trás da lente?
M - O meu processo em qualquer trabalho começa do fim para o início. Imagino como quero que o resultado final seja em termos de estilo, de técnicas, faço listas de ideias e de coisas que quero filmar, e dentro dos possíveis permitidos num contexto que não é muito controlável, cumpro. O meu principal objectivo nunca se alterou, gosto de brincar com luz, procurar os seus efeitos, usá-la de forma poética e acima de tudo transparecer o próprio ambiente da ocasião. Não vou filmar o Amplifest da mesma forma que filmaria por exemplo um Nos Alive porque cada sítio tem uma luz, uma emoção, uma dinâmica, como uma impressão digital, e quando consegues ter essa identidade distinta de tudo o resto estás no caminho certo, quer seja nos festivais ou na criação de conteúdo.
Tendo em conta que já fotografaste e filmaste o Ampli no passado, qual desses gostaste mais de fazer e porquê?
M - Há uns anos não saberia responder a essa pergunta, mas agora escolho filmar sem dúvida, porque a única coisa mais bonita que luz é poder captar a forma como esta se move. Essa interação entre o movimento da luz, das pessoas e dos artistas.
Das quatro bandas mencionadas no 4º capítulo, qual a que estás mais ansiosa para “capturar”? Porquê?
M - Apesar de já os ter visto e filmado antes, estou muito expectante por Amenra. Eu tenho esta tendência de regressar ao que já conheço e quero perceber o que mudou na forma como os percepciono. A seguir vem Deafheaven que nunca vi ao vivo e tenho muita curiosidade.
Se algo mudasse, quer seja o espaço, o formato ou até mesmo a cidade, acreditas que o ambiente se mantinha? O que mudarias no festival?
M - Acho que a essência, seja do que for, vive do seu contexto: do espaço, das pessoas, de quem o cria. Tudo é permeável para o bom e para o mau e o formato atual do Amplifest é todo ele coerente. O Hard Club, (para mim será sempre o antigo mercado Ferreira Borges) apesar de não ter as melhores condições, une e permite o evento fluir. O facto de ser no Porto e não em Lisboa confere-lhe um intimismo muito raro nos festivais e acho que não seria o mesmo se algo mudasse. Não que fosse pior ou melhor, mudança é mudança, mas não seria o que é agora. Sinceramente não tenho muito a apontar, é um festival extremamente confortável a nível de infra-estruturas com uma curadoria excelente e onde o pessoal aproveita para se rever, às vezes até vindos de outros países. É como uma reunião gigante de amigos mas com mais mosh.