
20 horas de música, 4 horas para dormir. 2 dias, 40 horas de música e 8 para dormir.
Numa mata ali pelas margens do Ribatejo, a pacata vila de Valada teve assim um encontro imediato de 4ºgrau com o melhor do psicadélicósmico que por aí se faz, por lá teve lugar aquele que provavelmente É o melhor festival por terras nacionais, aquele que provavelmente É o grande paraíso musical. Aquele que para o ano tem de acontecer, e depois, e depois e depois.
Com dois dias de pura alucinação cósmica onde ao almoço começavam os primeiros acordes e ao pequeno-almoço acabavam os últimos, o Reverence provou que não era um festival para meninos, era pesado, puxado, forte e espetacular. O facto de passarmos grande parte do festival a viajar entre galáxias fazia com que o tempo fosse só mais uma coisa que trazíamos ao pulso, um acessório.
O público que por lá andava, vindo de todo o lado, especialmente europeus, estavam em casa, como todos nós, numa harmonia sideral, onde cada acorde marcava uma rotação lunar diferente. O cartaz era espetacular, tudo era bom e imperdível, do início ao fim, não era permitido descansar porque isso podia significar perder um dos concertos mais míticos. Mas deixem-nos descrever o cenário:
Imaginem o Rio Tejo com uma Mata ao lado, depois imaginem os dias e noites quentes de verão, com céus límpidos. Tínhamos livre passe para sair da estratosfera quando nos apetecesse, tocávamos na ursa maior, high five na Cassiopeia e dizíamos olá à Andromeda, deitados na erva, com um toldo embalado pela brisa quase marítima, empurrados para o além da nossa perspetiva, assistindo a uma alucinação espacial coletiva, vibrando com cada distorção, e debatemo-nos com a realidade de quem está a produzir estas melodias que nos envolviam de tal forma que o Éter somos nós. Mas também havia nuvens que nos prendiam a visões psicadélicas, disformes e belas, puxados contra ritmos bruscos e arrastados da vastidão de tudo. Também cantamos, entoamos o ritmo espacial e voamos como cometas no céu das pessoas. Tudo termina com um extâse enfumado acompanhado de um sol quente nascente na margem do rio, ouvimos o chamamento à Terra, enfeitiçaram-nos em tom Indiano, descemos bamboleando em nós próprios. Isto foi o Reverence.

Dentro de tudo isto que nos fazia viajar, eis o que marcou mesmo:
Lá a meio da tarde do primeiro dia, o palco Rio fica inundado de Califórnia e a plateia também. Com um público sentado no início, os Asteroid #4 deram um concerto onde se notava que estavam todos a gostar de estar ali, Ryan, Scott, Matthew, Eric e Adam ainda disseram que a Califórnia é que é o Portugal da América. Uns senhores americanos que estavam na plateia quiseram chamar o pessoal para a frente e assim uma front line se foi formando para engolir estes belos sons psicadélicos. No fim pedimos mais música, deram-nos mais uma (''Let It Go'') e acabou em grande festa. Como não tinham setlist, escreveram umas de propósito para o pessoal levar para casa, ofereceram autocolantes e pins e tudo se tornou num ambiente super amigável e simpático, como se Valada fosse a casa deles, e a nossa.
Um dos maiores momentos esteve a cargo dos Sleepy Sun que nos ofereceram um dos melhores concertos do Reverence. Apesar de grande parte do público estar sentado, tudo se levantou ao som de “Sandstorm Woman” e no meio dos sons violentos do baixo e da histeria do vocalista, os Sleepy Sun levaram-nos com eles para outras dimensões, onde a harmónica marcava o tempo que por lá ficávamos. Infelizmente esse tempo foi só meia hora, o que deixou uma sensação de terem cortado o clímax a meio.
Lá pelo palco principal, os Red Fang apresentaram um concerto coerente com os seus três álbuns de estúdio. Deram o mote aos primeiros grandes moches ainda aos primeiros crowdsurfs, acabando o seu alinhamento com “Prehistoric Dog”. Já depois dos Graveyard terem "despachado" o seu concerto, a acabar o dia neste palco os Electric Wizard fizeram aquilo que já se esperava, puseram os milhares em head bang com o seu stoner/sludge vindo diretamente do inferno. Ouvimos músicas do Dopethrone, não esquecendo os outros álbuns. O concerto findou com “Black Mass” deixando o público com água na boca e sedento por mais, esperemos que voltem.

A fechar o primeiro dia de festival estiveram os Ingleses The Cosmic Dead. E que encerramento brutal! Após um concerto a meio-gás por parte dos Black Bombaim, que nos pôs em delírio absoluto em algumas músicas e quase a dormir noutras, os Cosmic Dead mostraram que apesar da hora, a energia continuava presente no nosso corpo e pronta a ser libertada. Foi um concerto intensíssimo com a banda a pendurar guitarras nas colunas e gritar pela independência da Escócia. Aconteceu tudo naquela curta meia hora. Os endiabrados Omar, Lewis, Julian e James deram tudo o que tinham, provando que valeu a pena termos ficado no recinto até tão tarde. Queríamos mais mas não houve tempo, pois mal o concerto acabou, os seguranças correram connosco do recinto. Não houve tempo para conversas, restou-nos apenas a força de nos deslocarmos até à tenda após esta dose de morte cósmica e tentarmos ganhar forças, porque dali a umas horas havia mais.

Já no segundo dia, os Air Formation tomaram de assalto o palco Rio para de repente nos vermos imersos num clima dreamy tanto ou quanto depressivo. O público, que era embalado pelas bandas stoner e psicadélicas que andavam por ali, não lidou bem com a estranheza sonora que pairava, sucedendo uma espécie de diáspora para o palco Sabotage. Porém, os que ficaram trataram de fazer com que o concerto e o ambiente fosse inesquecível. No final, já depois de terem arrancada um grande aplauso, a banda veio falar com o público para saber o que tinham achado. Uma boa reunião, que ao contrário do que acontece na maioria dos casos, não foi apenas feita pelo dinheiro.
A abrir o Palco Reverence estiveram os Nova-Iorquinos, de Brooklyn, A Place To Bury Strangers, que mesmo com pouco público, deram o melhor que conseguiram, incendiando as almas dos mais desprevenidos com o seu shoegaze barulhento e violento. Estes senhores sabem muito bem o que fazem. A maioria da plateia desconhecia-os por completo e o trio soube jogar com isso a seu favor, partindo guitarras, deslocando amplificadores, atirando baixos ao ar infinitas vezes (sinceramente, não sabemos como é que o baixo não se partiu). Os A Place To Bury Strangers deveriam-se chamar A Place To Bury Guitars e o túmulo daquela Jaguar foi Valada, com o cemitério na parte de trás do palco e ainda com o espírito dos Graveyard pairando no ar, estes assassinos de instrumentos sentiram-se em casa.

A segunda banda a atuar no palco Reverence foram os Psychic TV. A banda era maioritariamente desconhecida pelo público, no entanto, ao longo do concerto foi conquistando lugar no coração e nos ouvidos dos presentes. Era difícil superar a estrondeira dos A Place To Bury Strangers mas estes Psychic TV mostraram que fizeram o trabalho de casa. Músicas de dez minutos super psicadélicas encantaram a audiência, vimos muitos de olhos fechados a sentir o smog sonoro emanado do palco Reverence. ''After Your Dead, She Said'' e ''Suspicious'' foram os momentos altos da sua atuação, encaixando perfeitamente após a atuação dos Nova-Iorquinos.
Assim chegava a hora da estreia dos míticos Hawkwind em Portugal. Existentes desde 1969, é incrível como estes Senhores (com 'S' grande) do Roque Espacial nunca cá tinham vindo. Foram precisos 55 anos para eles pousarem a sua nave neste retângulo à beira mar plantado. Os Hawkwind fizeram a festa de uma maneira que só eles a poderiam fazer, e apesar de um início um bocado atribulado, fecharam em grande para regozejo dos presentes. Os momentos mais festejados do concerto foram, precisamente, os três últimos: “You'd Better Believe It” (com Tim Blake a fazer magia no theremin), “Orgone Accumulator” (quem nunca sonhou em cantar isto de pulmões ''abertos''??) e “Hassan I Sahba” (Hashish, hashish, hashin) música que nos transportou diretamente para o Médio Oriente.

Quando inacreditavelmente ou não, são 6:30 da manhã, o sol já nasceu e as Índias e Áfricas emergem no meio do fumo denso do palco Sabotage. A espera vale a pena e JIBÓIA fecha o festival com um concerto onde o tribalismo nos circulou pelas veias e dançamos as danças todas aos deuses todos. Veio o sol, veio a chuva, tudo funcionou, era um êxtase onde cada um se libertou à sua maneira, a terra húmida deixava os movimentos fluírem e as árvores dançaram connosco. Não se sabe bem o que aconteceu, desde teclados frenéticos a guitarradas hipnóticas com gritos em canto que nos obrigavam a viajar numa atmosfera mágica e imparável. JIBÓIA enfeitiçou-nos como se a cobra fossemos nós e ainda não estamos com os pés assentes na terra.
O Reverence foi tudo isto, foi viagens, foi boa música, foi um exagero excelente. Talvez já tenhamos todos descido à terra, mas quando pensamos, voltamos lá: