Deafkids está na boca do povo. Desde que a banda oriunda de São Paulo, Brasil foi anunciada pela Neurot, dos enormes Neurosis, o trio tem-se servido de uma grande exposição ao estrangeiro. Após o mais recente lançamento Metaprogramação, os rapazes anunciaram digressão pela Europa com Rakta, mais duas performances no Roadburn. Uma delas com Petbrick, de Igor Cavalera (ex-Sepultura, Cavalera Conspiracy). Nessas datas, carimbaram ainda uma passagem por Portugal com intervenção no Porto e no muito aclamado SWR Barroselas Metalfest. Já com tour anunciada nos EUA ao lado de Neurosis e Bell Witch, é justo dizer que 2019 está a correr bem aos brasileiros. Desde então, estes já marcaram presença em solo português mais uma mão cheia de vezes, pelo OUT.FEST no Barreiro, e como nome surpresa neste último Amplifest.
Promovendo um paredão de som simultaneamente complexo e esmagador, Deafkids são notavelmente inteligentes e dados ao protesto. Assegurando influências do d-beat como Amebix, tanto da música urbana brasileira, o trio carrega um assalto sonoro de distorção, noise e rítmica pura. Horas antes de subirem ao palco secundário no SWR Barroselas Metalfest, cruzámo-nos com o conjunto e em tão pouco tempo fomos catapultados por Mariano e Marcelo a uma profunda conversa sobre a Neurot, colaborar com Igor Cavalera e o estado atual do Brasil.
Vocês estão atualmente a terminar uma enorme digressão para promover o vosso novo disco Metaprogramação. É a primeira vez que estão em digressão pela europa? Como está a ser tocar com Rakta todos os dias?
Mariano - Essa é a quarta tour na Europa. É a segunda depois que rolou todo o negócio com a Neurot. Tocar com Rakta está sendo bem legal, porque a gente já é bem amigo no Brasil. Já faz coisa junto mas é a primeira vez que a gente faz uma coisa mais macro, e tá sendo bem legal. A gente gosta muito um da banda do outro, muito bom se ver tocar, se ajudar. Estar juntos nos processos assim, é bem legal.
Marcelo - Além da amizade, a coisa do som tem muito a ver. A visão de música. Inclusive a gente gravou três sons, disponíveis no EP, e que a gente compôs juntos. A experiência está a ser 100%, melhor impossível.
Como referi, Metaprogramação é o vosso disco mais recente e desde que saiu tem ganho bastante visibilidade pela Europa fora. Contem-nos como é que os astros se alinharam para terem a Neurot a lançar este vosso disco.
Mariano - Tudo aconteceu com a Configuração do Lamento. A gente gravou o disco primeiro só em fita e fez uma tour aqui em 2016, só que a gente voltou e a partir daí, no final desse ano e no início de 2017, a gente saiu numa lista de melhores discos do ano da CVLT Nation, com o nosso em terceiro e o de Neurosis em primeiro. O nosso dizia que a banda soava como nem outra e tal. O Steve Von Till estava checando a lista, ouviu a banda, achou muito bom, entrou em contacto com a gente e aí acabou lançando Configuração em 10”. A partir daí, surgiu um contacto e uma amizade, a gente já tocou com eles e vamos tocar de novo, e daí a gente querer lançar um álbum no começo desse ano, inclusive fazer esta tour, em que já sabíamos que íamos tocar no Roadburn. Aí ele falou que precisava do álbum em tal data na mão.
Marcelo - Eles também já queriam lançar algum material novo. Porque o disco anterior já tinha saído, e eles queriam ter material que fosse 100% pela Neurot. Teve uma data, um deadline, onde a gente fez um acordo para poder gravar e agora estamos aí.
Mariano - O álbum está pronto desde setembro e a gente compôs e gravou o disco em um mês e meio, quase dois mas todo o processo foi durante esse tempo.
Recentemente tocaram dois sets no Roadburn. Um deles com Petbrick de Igor Cavalera. Quem teve a ideia de unir os projectos?
Mariano - O Igor já tinha dado contacto com a gente, já tínhamos feito coisas com Petbrick, ele chegou até a fazer remix que inclusive a gente está lançando.
Marcelo - Lançou ontem aqui pela Lollypops do Porto, esse remix, o primeiro Remix que saiu que foi feito, foi de Petbrick.
Mariano - Uma fita de remixes do Configuração do Lamento. Aí, ele foi no nosso show em Londres, na última tour e aí a gente comentou do Roadburn e para fazermos qualquer coisa juntos, lindo! O Walter, ele topou e aí começou a tomar corpo. Ir ensaiar, fazer uma coisa aí, a gente foi antes para Londres e ensaiou com eles, e assim fomos para o Roadburn já com tudo feito.
Sabendo que o Brasil está a passar por uma fase complicada na sua história, qual é a importância de não só encontrar refúgio na música como também usá-la como arma contra os dias negros?
Mariano - Acho que é importante no sentido de ter que se reestruturar e redescobrir um certo calor em relação às coisas. Especialmente num momento onde a esquerda tem dificuldades em conseguir se unir e tomar uma ação de facto. Num momento em que a extrema direita ganha força com recursos que a gente não tem como enfrentar, como o Fake News, mala direta do Whatsapp, a própria distorção da noção de verdade. Então o grau de despolitização do Brasil tem a ver com o grau de letramento do Brasil que é muito baixo.
Marcelo - Essa condição de deseducação do povo é criado pela elite, que começou pela colonização, e acho que o Brasil sempre teve música que confrontasse a elite, sempre teve tipos de música que não é essa coisa mainstream ou nesse padrão de elite cultural. Então há muita música no Brasil que é de resistência que inspira a gente.
Mariano - É muito interessante perceber a maneira como a música do Brasil tem essa coisa que é urbana, que é da música de mistura mesmo, e aí se vê como várias origens criam uma resistência que é mais duradoura, que é a resistência do dia-a-dia, a resistência de organizar ou fazer um samba junto, organizar um funk do Rio por exemplo. É um faça você mesmo, uma questão que não é tão ligado a uma cena como é a estética, é um lance de faça você mesmo no sentido de apoio mútuo. Você vai a um bar, aprendendo tocar vendo música a ser feita. Ao mesmo tempo é uma cena despolitizada porque as pessoas estão ali, a beber, dançando. No entanto, aquilo carrega um fogo descolonizador. Então é interessante para a gente tentar se inspirar nessas coisas, porque justamente precisamos de redescobrir um certo lidar com coisas como depressão, doenças da ordem psíquica, que a gente de precisa de estar junto, de uma maneira mais calorosa mesmo, para conseguir vencer e vencer coisas maiores. Assim estamos sempre a apagar um fogo maior que outro.
Marcelo - Acho que no Brasil, a elite, os políticos controlam muito, tipo máfia mesmo. Não é máfia que digo, é veículos de comunicação mesmo por exemplo, de companhia de transporte, no sentido que a elite sempre teve controlo duma forma muito cruel, muito massacrante e tem um contraste social muito grande. Acho que na música agora, como a gente está falando nesses ritmos, tem a ver com resistência cultural, a gente precisa disso para estar mais junto, disseminar uma ideia que é possível a gente resistir, a gente criar uma nova situação e melhorar as coisas, na medida do possível.
Apesar da vossa música não se encaixar perfeitamente com música extrema, temos Deafkids num dos festivais portugueses mais emblemáticos do metal. Como é que se sentem num alinhamento destes?
Mariano - É realmente muito doido, porque para a gente, apesar de ter esses pontos de convergência como o d-beat, Motorhead, Venom, coisas que a gente gosta muito, a gente não considera que a gente faz metal mesmo. Até porque a gente tem questão de ser um pouco mais rijo. Tem uma corporalidade mais rija e a gente lida com questões do corpo, da maneira como a gente está fazendo o som, que vem de outras vivências que a gente tem, influências de música local.
Marcelo - Como a gente está a falar do tipo de música brasileira que é um pouco mais cadenciada.
Mariano - Sincopada, por exemplo, os interesses pessoais que cada um tem em música do mundo, música psicadélica dos anos 70, funk americano, muita coisa, música indiana. É muito doido perceber que é muito legal fazer música extrema no sentido que ela vai para extremos tipo eles têm aspectos que a gente faz que são decifráveis para uma parcela de pessoas aqui, assim como em várias outras cenas vão ter outros aspectos como a distorção ou a altura, que vão ser indecifráveis para outras pessoas mas que o ritmo vai tornar decifrável. É muito louca essa sensação de ser apreciado apesar de fazer música que realmente não é jogadora com todo o mundo mas é jogadora a favor de todo o mundo. É muito legal estar aqui, ter tocado no Roadburn como por exemplo. É muito legal porque apesar de ser um guarda chuva dentro dum metier, é um metier ainda. Ainda tem uma certa orientação, ser incluído nessa orientação e mesmo com toda essa heterodoxia e mesmo assim ser apreciado, nos deixa muito gratificados.
Mariano - Apesar de sermos considerados uma banda diferente, temos ainda as nossas influências de punk, falando de Amebix e Discharge, mas a gente também coloca outras coisas do som que vem naturalmente. Então acho legal ser incluído assim como som pesado.
Marcelo - É interessante, que acaba sendo uma coisa que acaba impedindo limitação, não tem como achar quem ache a gente sei lá banda de metal ou metal/punk. A pessoa não vai chegar lá esperar metal/punk com Bossanova, vai se sentir frustrada. Ou ela pode gostar porque é um negócio. A mistura tem a ver com a forma como a gente é formado etnicamente, socialmente que é um público conflituoso, não é pacífico, mas ao mesmo tempo gerou e gera muita coisa da hora. Muita coisa interessante como o samba, todas as músicas urbanas do brasil, o forró, o punk, toda a música que surgiu desse embate.
Que outros planos vos esperam agora?
Mariano - Terminar essa tour, continuar os shows com Rakta.
Marcelo - A gente vai pela primeira aos Estados Unidos em Agosto, com Neurosis e Bell Witch. Por enquanto, é isso.
Mariano - A gente está muito grato pelas portas que nos foram abertas e até essa, a amizade que a gente construiu.
Marcelo - Através da música, de estar na estrada, tocando, lançando discos.
Mariano - E esse processo nunca para, durante essa tour em agosto, já devemos ter outra coisa gatilhada mais para a frente, vice-versa. Estamos vivendo uma vida que agora está muito voltada para isso, porque está no olho do furacão, as coisas estão acontecendo, então quem sabe o que virá?
Por fim, que têm ouvido ultimamente?
Mariano - No meu caso, muita música latina, música indiana, gosto muito do Tito Poente, um percussionista, gosto muito de música progressiva malucona, como por exemplo tem um percussionista argelino chamado Guem (Et Zaka), muito bom que é música progressiva composta, que tem toda uma construção, mas geralmente tendo a ouvir música que é psicadélica e rítmica.
Marcelo - Eu tenho escutado bastante samba, dub, reggae, música brasileira assim geral, rítmica tipo musica zumba, mais rap tipo anos 90 americano. Ultimamente a gente ouve aí um funaná aí do Cabo Verde, fudido, tem o Bonga também, e por aí vai. Mas diria uma coisa mais samba, dub, reggae e é isso. Sempre de volta a ouvir um Discharge, muito Amebix.