[Março]
Arab Strap - As Days Get Dark (Book Action)
Naquele que é o seu primeiro disco de originais em dezasseis anos, os Arab Strap mantêm inalterada a sedução decadente que os tornou num dos mais fascinantes projetos a sair da Escócia nos anos 90. Esse legado é imediatamente referenciado na primeira frase do tema de abertura, quando Aidan Moffat canta “I don't give a fuck about the past / Or glory days gone by”, proferido com um misto de indignação e charme autodepreciativo absolutamente contagiante. Todo este trabalho, aliás, carrega essa inebriante atmosfera de tristeza, reflexão e cansaço existencial cuidadosamente temperada com finas doses de humor seco, quase como se estivéssemos perante uns Sleaford Mods mais depressivos e introspetivos, mas igualmente genuínos no modo como espelham a podridão da sociedade que os rodeia. A instrumentação é simples mas requintada, incorporando batidas pulsantes, leves melodias de guitarra ou apontamentos de piano, saxofone e violino tão delicados e apaixonantes quanto uma carícia que percorre gentilmente a cara; já as letras assumem-se como um conjunto de observações e desabafos que ilustram, de forma magistral, toda a escuridão, degradação ou fragilidade da condição humana, enaltecendo a crua honestidade de um álbum tão poético quanto denso. - JA
Armand Hammer & The Alchemist - HARAM (Backwoodz)
Parece que quando o nome de Billy Woods surge numa colaboração, a tendência é para que se faça espremer a polpa das capacidades de cada nome e apresentá-las numa coexistência perfeita. Woods é uma espécie de Midas do complemento mútuo, e o projeto de Armand Hammer atesta precisamente isso. HARAM é um conjunto de lugares onde as passagens fortemente atmosféricas já apreciadas por Woods e ELUCID, a imagem de um enredo cinematográfico, a certeza imponente nas palavras de ELUCID na construção de um comentário social inevitavelmente carregado de emoção nos conseguem consumir por completo. Sendo um disco velado pela densidade do trip-hop, The Alchemist dá-lhe um gosto a Los Angeles, enquanto o analógico sensibiliza as músicas com pedaços de saxofone ou pianos gotejantes. No meio de tanto groove quente, HARAM fala-nos do bom e do puro, dos seus contrários, do proibido e do lado feio do assunto, sem restrições, abrigando cada faixa num cenário próprio, construído para que o efeito emocional das palavras não passe ao lado. - BF
Dj Muggs the Black Goat - Dies Occidentum (Sacred Bones)
Fevereiro trouxe-nos Death and The Magician, onde DJ Muggs e Rome Streetz puseram na mesa o melhor de si para trazer um instrumental encardido que deu poder às verdades feias das letras de Rome. Este nome da casa do dark hip-hop traz-nos agora Dies Occidendum. As referências sonoras e visuais apontam para o clero gótico e o folclore medieval, para alimentar a escolha estética sombria e enigmática de Muggs. Mostra-nos uma espécie de narrativa silenciosa, completa com samples vocais que nos falam de ódio, assassinatos, peste e um futuro tenebroso. A pendência ansiosa dos beats de trap, os sintetizadores a aparecer em ondas fantasmagóricas, o piano ominoso a entrar em bicos de pés: tudo compete pela nossa atenção. Com um pé no analógico, conta com a presença fumegante de uma guitarra psych e com uma bateria quasi-jazz cambaleante que encontramos em “Nigrum Mortem”. É um disco que nos fecha num espaço escuro e nos leva a caminhar de olhos vendados. É uma câmara de eco, uma experiência binaural imersiva que, no final, nos deixa sós no meio do nada, acordados pelo chilrear de grilos que despede o álbum. Dies Occidendum deixa-nos com uma sensação de espanto arrepiante. - BF
Eyehategod - A History of Nomadic Behaviour (Century Media)
A History of Nomadic Behavior é o primeiro álbum dos sludgers americanos Eyehategod em sete anos. Talvez mais importantemente, é também o primeiro álbum a contar com um Mike IX Williams pós-transplante de fígado e, para espanto coletivo, sóbrio. Quer conscientemente ou não, esta mudança de lifestyle acaba por se refletir aqui na forma de um álbum bem mais limpo, polido, e, quiçá, contido do que os seus antecessores, quase como se a banda estivesse mais consciente dos seus limites e mais reticente em testá-los — o que acaba por ser um bocado antitético a toda a estética enlameada do que era famosamente uma das bandas mais autodestrutivas à face do planeta. Dito isto, mesmo nos agora longínquos anos 90, quando ainda estavam a criar de raiz o que viria a transformar-se no sludge metal de hoje, os Eyehategod ainda se identificavam como sendo, fundamentalmente, uma banda de blues, algo que aqui é, mais do que nunca, manifesto. Os vocais de Williams continuam a ser ásperos e lancinantes, mas aqui são, pela primeira vez, inteligíveis. Os riffs blues de Jimmy Bowers continuam repletos de dissonâncias diversas, mas aqui despidos das habituais e sufocantes camadas de feedback. Este compromisso pode não vir ao agrado de todos, mas se queremos uns Eyehategod vivinhos que nos continuem a premiar com novos álbuns nos anos vindouros, talvez teremos que nos habituar a estes “novos” Eyehategod mais toned-down e, quiçá, mais saudáveis. - HM
Floating Points, Pharoah Sanders & The London Symphony Orchestra - Promises (Luaka Bop)
Promises aparece como o tipo de disco onde um cruzamento pouco convencional de artistas resulta na entrega de um trabalho capaz e disposto a surpreender-nos. O conhecimento e experiência da arte da produção de Floating Points junto com o veterano do saxofone Pharoah Sanders vêm-se apoiados pela Orquestra Sinfónica de Londres, naquela que é uma peça contínua surpreendente composta por nove movimentos que se dividem em faixas. Segue a mesma melodia de harpa durante a maior parte da peça, em torno da qual tudo o resto se deixa acontecer organicamente. O saxofone de Pharoah Sanders deixa correr a tinta à vontade em dinâmicas deambulantes, por vezes silencioso e paciente o suficiente para deixar audível o ruído de fundo quase estático que o sopro cria. Atrás dele, está uma multiplicidade de elementos hipnotizantes, detalhes estranhamente satisfatórios, sintetizadores espaçados de vários tipos, criando uma variedade brilhante de teclas e cordas de violino sedosas que florescem na ascendência. É um disco que funciona com subtilezas que preenchem o espaço vazio, mantendo sempre uma espécie de quietude que faz com que as harmonias funcionem como a representação musical dos primeiros raios de luz da madrugada. - BF
Hekate - Sermons to the Black Owl (Black Farm)
Da insuspeita Austrália chega-nos uma das mais ousadas e impactantes surpresas sonoras do ano. Consequência de um nebuloso, obscurantista e trevoso ritual onde são esconjurados e conjugados um enlutado, imperioso, intrigante e fibrado proto-doom de ameaçadoras feições luciféricas, um musculoso, oleado, flamejado e rumoroso Hard Rock de roupagem setentista, e ainda um glorioso, torneado, serpenteado e majestoso heavy blues de sedutora fragrância, este primeiro registo da formação australiana impõe-se de faca nos dentes, olhar fulminante e mangas arregaçadas. A sua poderosa sonoridade – que mescla a demoníaca liturgia de Black Sabbath com o tenso negrume de Saint Vitus e a enigmática feitiçaria de Witchcraft – pendula entre alucinadas, eufóricas e destravadas galopadas esporeadas a escaldante ferocidade, e melancólicas, embriagadas e misantrópicas passagens mergulhadas numa abissal obscuridade de beleza outonal. Este é um álbum verdadeiramente avassalador que nos centrifuga os sentidos, atesta de adrenalina e deixa em polvorosa. Uma abrasiva, opressiva e triunfante cavalgada, locomovida a frenética rotação e de consumo impróprio para cardíacos, que nos bombardeia, endoidece e incendeia de fascinada e transbordante excitação. - NT
(Lê a review completa a este disco no blog El Coyote)
Krallice - Demonic Wealth (P2/Gilead Media)
Krallice mantêm-se de tal forma prolíficos que nos ajudam a ter mais do que motivos suficientes para os colocarmos debaixo dos holofotes, pelo menos, uma vez por ano. Em 2019 mencionou-se o breve mas destrutivo Wolf, o ano passado brindou-se o retorno da banda aos lançamentos mais extensos com Mass Cathexis, e em 2021 complementa-se o décimo álbum de originais com uma proeza de autossustentabilidade, havendo sido não só sujeito à escrita em isolamento, como a própria gravação e produção do mesmo. O mais impressionante é encontrar uma banda que se sujeita a si própria a esses mesmos desafios e barreiras, sem que estas abalem minimamente o génio absurdo que convive entre estas quatro mentes. Apesar de Demonic Wealth ser, de facto, o disco de Krallice com a produção mais fraca – sublinha-se, no entanto, a captação de vozes num carro ao pé de um pântano ou a gravação das baterias num telemóvel –, este pode muito bem ser o esforço mais rico em nuances, texturas e profundidade musical que este quarteto já lançou até hoje. - JMA
La Era de Acuario - La Era de Acuario (Necio)
De pés ancorados na populosa capital da Cidade do México e espíritos boémios a vaguear pelo icónico bairro de Haight-Ashbury (localizado em São Francisco, Califórnia) – epicentro difusor do movimento hippie testemunhado na década de 1960 –, estes aztecas celebram todo um purificante, nebuloso e misterioso ritual de essência xamânica e afago espiritual, de onde sobressai um embriagante, prismático, onírico e deslumbrante neo-psych em erótica consonância com um alucinante, colorido, perfumado e extasiante acid rock de buliçosa efervescência. A sua sonoridade extraordinariamente estimulante, psicotrópica e dançante – escaldada e saturada de um exótico e afrodisíaco misticismo, e costurada a exuberantes adereços de estética sessentista – provoca no ouvinte toda uma mesclada salada sensorial, inesgotáveis visões caleidoscópicas, flutuantes miragens utópicas, e um imaculado estádio de transe sacramental. De pupilas dilatadas e sentidos narcotizados, somos passeados acima de um tapete voador pelos purpúreos céus crepusculares da velha Pérsia. Uma nirvânica, messiânica e lisérgica hipnose impregnada de LSD que nos encandeia e bronzeia de filosófica resplandecência hinduísta, e escancara as portas da perceção para uma extraordinária imersão no excêntrico universo de Aldous Huxley. - NT
(Lê a review completa a este disco no blog El Coyote)
Li Daiguo - Xiao Gong (WV Sorcerer Productions)
Está aqui um dos mais bizarros e surreais discos que vão ouvir este ano, algo tão espantoso e simultaneamente idiossincrático que somente falar dele constitui já uma autêntica aventura. Manifesto artístico de um ambicioso músico sino-americano, pega em instrumentos tradicionais da China, como o pipa, guzheng ou xiao, para construir a sua própria visão do futuro a partir do passado, num exercício tão ancestral quanto futurista. Há aqui uma desconstrução sonora particularmente radical, mas o que sobressai é a sensação de nunca termos realmente escutado algo assim, mesmo que já tenhamos sido confrontados com algo parecido. Não a este nível, no entanto, não com esta profundeza. Explorar este ritual – não ousamos chamar-lhe outra coisa – é como viajar pelo legado musical da China enquanto a nossa mente processa os efeitos de uma trip de LSD. Tudo se revela estranho, esotérico até; o produto de uma rave espiritual celebrada no encanto da natureza. A linguagem musical dominante é, portanto, a eletrónica experimental, ora mais ritmada, ora apoiada em passagens de noise e drone, sendo que o resultado final só pode ser descrito como catártico e transcendente. Recomendado para quem tiver estômago para o absorver… - JA
Monte Penumbra - As Blades in the Firmament (NoEvDia)
É com um particular prazer que vejo um disco tão bom como As Blades in the Firmament, de carimbo português por parte de Monte Penumbra, a ser lançado por uma editora tão fulcral ao movimento do black metal como a Norma Evangelium Diaboli. Composto no seu miolo fatalista pelo português W .ur, o real centro criativo do projeto contou ainda com a contribuição assoladora do islandês Bjarni Einarsson (Sinmara, Rebirth of Nefast) na secção rítmica, bem como a mistura e masterização na mão do senhor Stephen Lockhart (Tchornobog, Svartidauði, Sinmara). O resultado final é, francamente, arrebatador. Não só por perfilar uma approach tradicional a uma sonoridade que se tem vincado nesta nova vaga de black metal “moderno”, mas fá-lo de uma forma que não sacrifica nem atmosfera, nem peso, nem emoção em prol de uma coisa em relação a outra. Falando do prazer anteriormente mencionado, fica ainda mais sublinhado quando, até agora em 2021, se encontram poucos discos de black metal que tenham superado este. Monstruoso! - JMA
Naoko Sakata - Dancing Spirits (Pomperipossa)
Dancing Spirits é daqueles discos que exige toda a nossa atenção, mas que se revela absolutamente gratificante quando nele decidimos mergulhar. Obra de uma extraordinária pianista japonesa, lançada pela editora da também magnífica Anna Von Hausswolff, constrói a ponte entre o clássico e o experimental para, no final, habitar confortavelmente o seu próprio mundo. Vive essencialmente da improvisação (mesmo os títulos são somente números), mas o que mais espanta nem é, surpreendentemente, a qualidade destas sete peças nascidas da mais pura espontaneidade, mas antes a impetuosidade com que Naoko arranca emoções do seu piano, usando-o como uma caneta com a qual liberta versos de uma encantadora poesia sonora. Há algo de profundamente espiritual – pode mesmo dizer-se sagrado – na intensidade emocional presente em cada nota, como se toda esta experiência, mais do que meramente interpretativa, possuísse também um caráter religioso. As paisagens aqui pintadas são detalhadas e íntimas, por vezes de forma doce e fantasiosa, outras vezes de forma louca e intempestiva (em certos momentos, recordamo-nos até dos experimentalismos aventureiros de Richard Wright, teclista dos Pink Floyd, no seminal Ummagumma) e revestem-se de uma magia que mil palavras se mostram incapazes de descrever… Resta, então, senti-la com o coração. - JA
Sepulcros - Vazio (Transcending Obscurity)
Doom meets death once again, mas desta vez em português. Cinco figuras obscuras reúnem-se para nos transportar até às mais misteriosas planícies abissais, numa viagem só de ida. Nomes como Evoken ou Mournful Congregation são meras reminiscências, num álbum de estreia bastante coeso onde se revela uma identidade própria. Paisagens desoladas e dantescas são preenchidas por uma impenetrável parede de som, suportada por riffs hipnóticos e por atormentados growls cavernosos. A bateria carrega o peso de uma inesperada dinâmica de tempos, até para este género, alternando entre um compasso glacial e tumultuosos episódios de blast beats. Brutal e melancólico, remete-nos para aquela letargia tão intrínseca à condição humana. - AT
Serj Tankian - Elasticity (Alchemy)
Este novo EP de Serj Tankian pode ter sido lançado a solo, mas a verdade é que inclui composições que o vocalista tinha originalmente composto para os System of a Down e que foram vetadas quando a banda não conseguiu concordar numa direção a seguir. Por outras palavras, estamos perante uma amostra daquilo que ouviríamos num novo disco dos autores de Toxicity se este alguma vez fosse gravado, com a diferença de ter sido adaptado à visão singular de Serj. As músicas soam vitais e dinâmicas, fluem extremamente bem e são engrandecidas pela voz frenética e imprevisível deste carismático frontman, que ora adota um registo teatral, por vezes quase dadaísta, ora assume um tom urgente francamente arrepiante. Musicalmente, tanto viajamos por territórios bem próximos do universo dos System, como seria de esperar (“Your Mom” é uma autêntica pérola de metal alternativo de sentimento prog, cheia de excitantes mudanças de tempo), como subitamente seguimos por caminhos mais melódicos abraçados pelo calor do piano (“How Many Times?” e “Rumi”) ou dizemos olá à eletrónica enquanto permanecemos de mão dada com o rock. Solto, inspirado e cheio de força: assim se apresenta orgulhosamente o nosso anfitrião. - JA
The Black Heart Death Cult - Sonic Mantras (Kozmik Artifaktz)
Sonic Mantras é o novo e segundo álbum do talentoso e apaixonante coletivo australiano The Black Heart Death Cult, e vem pincelado e aureolado por um lustroso, edénico e milagroso misticismo de resplandecência estival e fragância oriental de onde facilmente se apalada um refrescante, mélico, magnético e deslumbrante shoegaze pautado a imersivos e cativantes ritmos krauty e tingido a diluviano e caleidoscópico psicadelismo, que se desenvolve, agiganta e revolve num mântrico, fogoso, venenoso e profético heavy psych de carregadas feições Doomescas. A sua sonoridade nirvânica, melíflua, sedosa e talismânica tem o dom de nos farolizar, enternecer e canalizar pelas mais erógenas zonas da nossa espiritualidade, ancorando-nos e perpetuando-nos num ébrio estádio de sublimado e inesgotável encantamento. De pálpebras rebaixadas, olhar embaciado, ouvidos salivantes, semblante petrificado e espírito reconfortado pela inefável doçura que este Sonic Mantras respira e transpira, somos embrumados e namorados pela bucólica, etérea e afrodisíaca radiação de The Black Heart Death Cult, e acordados no meio de um faustoso, expressivo e aparatoso bazar. - NT
(Lê a review completa a este disco no blog El Coyote)
Wolvennest - Temple (Ván)
Os ritualistas belgas Wolvennest estão de volta depois do aclamado e muito abraçado último disco Void e colaboração com Der Blutharsch. Temple chega-nos sob o seguimento hipnótico daquilo que tem sido a espinha dorsal do coletivo de Bruxelas. Na verdade, de todos os lançamentos de Wolvennest, este pode muito bem ser o mais consistente e focado, que mesmo sem mostrar muita dinâmica ou qualquer coisa de novo, ganha com a sua estrondosa atmosfera e vibração. Deparando-se o ouvinte com uma extensão total de cerca de uma hora e dezassete minutos, há que confrontar Temple como um filme ou uma sessão de filiação espiritual. Recorrendo à purga com enormes e pujantes guitarras a preencher o fórum dos deuses, é impossível resistir à aura da sua energia e a toda a fragrância do oculto, que mais se parece a louvar a eletricidade dentro de cada um de nós do que qualquer outra coisa. - JMA
[Abril]
Altarage - Succumb (Season of Mist)
Ao quarto álbum de originais, os Altarage permanecem um dos mais impressionantes nomes dentro do universo da música extrema, erguendo decadentes e sufocantes ondas de ruído que não só castigam os ouvidos, como esmagam cruelmente a alma. Mais do que simplesmente “barulhento”, o grupo distingue-se pela pujante sova emocional que fornece a quem tem coragem de mergulhar no seu universo (e acreditem que não é para todos) – um universo tão devastador que, por vezes, parece que estamos a ser sugados para um buraco negro. Por outras palavras, blackened death violento, agonizante e esquizofrénico, recheado de riffs demolidores e uma brutalidade de tal forma surreal que mil adjetivos se revelam insuficientes para a descrever. Contudo, o coletivo basco não se limita a descarregar doses ensurdecedoras de peso e aposta igualmente na composição, sobretudo no que diz respeito à criação de atmosferas bem envolventes e grotescas. Na verdade, por vezes o clima é tão medonho que nos sentimos a atravessar os nove círculos do Inferno de Dante sem que haja esperança de vislumbrar o Paraíso. Junta-se a isso uma produção “suja” mas percetível e o resultado é um dos mais arrepiantes manifestos sonoros de 2021. - JA
Andy Stott - Never the Right Time (Modern Love)
A forma como Andy Stott encadeia a música que produz fá-la funcionar como uma reflexão sonora de reconhecimento de um cenário distópico, abstrato o suficiente para que seja entendido como aquilo que está entre a dormência e uma certa reconciliação. Em Never the Right Time, Andy Stott continua a drenar as bases do techno e do dub para o fazer pulsar em contornos de shoegaze e ambient, com instintos de pop e hardcore, dando às faixas uma vivência industrializada, vacilante e pendente. Aqui, Alison Skidmore junta-se mais uma vez ao produtor para trazer a este disco a doçura e a exposição pacífica da sua voz, que vibra entre o instrumental, suavizando-o frequentemente pelo contraste. O instrumental dilata e contrai numa espécie de dança rigorosa, vulnerável mas severa no seu impacto, abrindo fendas, rachando, colidindo, escalando e dissolvendo-se no ambiente criado no decorrer da faixa. O sítio para onde este álbum nos puxa é o equivalente musical a um estado de sonho lúcido hipnótico. - BF
Bodom After Midnight - Paint the Sky with Blood (Napalm)
Há um sentimento profundamente agridoce que nos invade a alma quando escutamos este EP dos Bodom After Midnight, projeto que o malogrado Alexi Laiho formou após a dissolução dos Children of Bodom, agora lançado como registo póstumo. Basicamente, o que aqui temos são três temas – dois originais e uma magnífica cover de “Where Dead Angels Lie”, dos Dissection – que recuperam muita da magia dos primeiros trabalhos dos COB, mas que não deixam de ilustrar um surpreendente renascimento criativo cruelmente interrompido. É precisamente esse contraste de emoções que transforma esta escuta numa experiência tão comovente quanto duramente desoladora, uma despedida memorável que aquece o coração mas que, a todos os níveis, terá sempre sido injustamente prematura. Musicalmente há uma clara vontade da parte de Alexi em regressar à fórmula de death metal melódico, com laivos de black metal e apoiado numa base neoclássica, de discos como Hatebreeder ou Follow the Reaper, e mesmo não estando estas duas composições exatamente no mesmo nível desses clássicos intemporais, a forma como se aproximam arranca-nos um sorriso do rosto. Enfim, um inspirado recomeço que o mundo, infelizmente, tornou num derradeiro ponto final… Descansa em paz, Alexi. - JA
Body Void - Bury Me Beneath This Rotting Earth (Prosthetic)
Ryan e Holgerson regressam para um terceiro assalto de devastação. O cartão de visita deste duo de Vermont mantém-se: um real manifesto político de blackened sludge, com direito às típicas notas de doom e crust punk. Escrito durante o primeiro ano de pandemia, as letras e a voz nunca se entregam a meios-termos ou paninhos quentes, abordando problemáticas com tanto de atual como de intemporal. Colonialismo, capitalismo e alterações climáticas num tom absolutamente sufocante, quase macabro, mas nunca derrotista. O compasso incisivo da bateria cria um terror palpável, embalado por um tom de agonia e fúria quase intoleráveis. A eletrónica e o noise embrulham-se na distorção da guitarra e entregam-nos uma das mais precisas wake-up calls do ano, quando já muito pouco escapa ao colapso. A patada na boca que tantos precisam. Volume no máximo, os vizinhos que lutem. - AT
Fuoco Fatuo - Obsidian Katabasis (Profound Lore)
Este é o primeiro de dois grandes lançamentos da Profound Lore no mês de abril. O retorno mais que abraçado dos italianos Fuoco Fatuo, que mesmo não sendo das grandes referências ou nomes sublinhados no atual panorama de doom e death, têm sabido conjugar o peso com ambição em ideias novas e esmagadoras. E, de facto, o funeral doom que este quarteto de Varese toca não é melancólico, melodramático, nem vive com uma constante cadência na sua moldura. Se Backwater, o seu imponente antecessor, já o havia representado, em Obsidian Katabasis é francamente notório. As guitarras são destemidamente assombrosas e cerram em redor do ouvinte como se de uma névoa se tratasse. Espessa, translúcida e assombrosa, o volume é sem dúvida a arma principal. Os growls gravíssimos, a tombante presença de frequências baixas, e a algo abstrata secção de ritmos transformam o imponente e majestoso em algo simplesmente aterrorizante. Uma figura que partilha o mesmo material essencial de que os pesadelos são feitos. - JMA
Godspeed You! Black Emperor - G_D’s Pee AT STATE’S END! (Constellation)
G_d’s Pee AT STATE’S END!, sétimo álbum dos eminentes post-rockers canadianos Godspeed You! Black Emperor, é composto por quatro faixas, duas das quais subdivididas em várias secções — uma estrutura já explorada no antecessor Luciferian Towers. “Job’s Lament” e “First of the Last Glaciers”, segunda e terceira secções da primeira faixa, exploram um simples motivo ascendente em estereotípico linguajar post-rock até à exaustão, gradualmente mudando de foco para um motivo mais lento e sincopado, este último fazendo lembrar o drone com sabor a Spaghetti Western de uns Earth. Já em “Fire at Static Valley”, um bombo omnipresente e um tímido motivo na guitarra arrastam-se contra paredes de dissonância. ““GOVERNMENT CAME” (9980.0kHz 3617.1kHz 4521.0 kHz)” demora um pouco a encontrar o seu passo, acabando por se decidir numa lenta e langorosa melodia a tempo ternário, que se vai ampliando à medida que a faixa progride. Por fim, “Cliffs Gaze / cliffs' gaze at empty waters' rise / ASHES TO SEA or NEARER TO THEE” constitui o clímax emocional do álbum, contendo, nos seus compassos finais, o que talvez seja a música mais descomplicadamente triunfante em toda a discografia dos GY!BE. No fim de contas, apesar dos GY!BE começarem todos os seus concertos com a mensagem “HOPE”, tampouco são ingénuos e reconhecem que o progresso, ainda que inexorável, não é um processo linear. Bem como a sua música. - HM
Gojira - Fortitude (Roadrunner)
Com Fortitude, sétimo álbum dos franceses Gojira, a banda liderada pelos irmãos Joe e Mario Duplantier solidifica a sua posição como uma das bandas de metal mais relevantes da atualidade. Se com álbuns como os brilhantes From Mars to Sirius e The Way of All Flesh os Gojira já se tinham cimentado como indisputáveis colossos do género, Magma, no qual a banda transitou para uma sonoridade ligeiramente mais “acessível” (para falta de melhor termo), trouxe-lhes todos os elogios possíveis e imagináveis. Este ligeiro refinamento, que não sacrificou em nada a complexidade e mestria das suas músicas e arranjos até então, é realizado plenamente em Fortitude. O disco pega em todas as melhores ideias que já tinham sido semeadas em Magma e refina-as e reconstrói sob a lente do peculiar progressive death metal que é patente dos Gojira. O resultado é um álbum calejado de nuance que consegue percorrer o espectro de ponta a ponta, desde a sonoridade mais etérea até à mais brutal — frequentemente na mesma faixa, como, por exemplo, em “Another World”. Mas mera plenitude musical nunca satisfez os apetites criativos vorazes dos Gojira, que em “Fortitude” ainda injetam os temas de ativismo social e ambiental que lhes são tão queridos. “Born for One Thing”, “Hold On” e “Grind” lidam com diferentes facetas do estranho paradigma que é a vida moderna. Já em “Amazonia”, a banda traz à atenção a crise climática que consome a floresta nos dias de hoje. - HM
Heavy Feather - Mountain of Sugar (The Sign)
Mountain of Sugar vem chamejado e condimentado por um ostentoso, lubrificado, açucarado e melodioso blues-rock de roupagem vintage que ocasionalmente se maquilha e metamorfoseia num picante, lascivo, convidativo e dançante boogie rock. De inspiração resgatada aos saudosos 60s e 70s, onde se notabilizaram vultosas referências do género como Cream, Taste, Stevie Ray Vaughan, Free, Cactus e Lynyrd Skynyrd, e com um forte grau de parentesco com bandas contemporâneas tais como Siena Root, Blues Pills, Radio Moscow, DeWolff, Wucan e Three Seasons, a fogosa, afrodisíaca e majestosa sonoridade deste talentoso coletivo escandinavo equilibra-se e envaidece-se por entre relaxantes, idílicas, românticas e reconfortantes baladas climatizadas a inefável doçura, e euforizantes, inflamadas, destravadas e alucinantes cavalgadas locomovidas à rédea solta. Este é um álbum verdadeiramente magistral, de simetria aprumada e beleza consumada, que preenchera a profunda barragem de expectativas a ele previamente dedicadas. Uma obra simultaneamente delicada, ternurenta, atiçada e turbulenta que tanto nos absorve num embriagado encantamento, como revolve num vulcânico empolgamento. Prazenteiem-se, incendeiem-se e viciem-se neste meloso e montanhoso néctar de ingestão auditiva, e vivenciem com inesgotável fascinação e imediata veneração um dos registos mais requintados do ano. - NT
(Lê a review completa a este disco no blog El Coyote)
Homem em Catarse - Sete Fontes (Regulator/Golden Pavillion)
Afonso Dorido, cara e “voz” que compõe este já duradouro projeto designado por Homem em Catarse, já conhece os cantos à casa, portanto dispensam-se apresentações acerca de um dos artistas portugueses mais árduos que temos no atual panorama nacional. É com alguma felicidade que vemos um esperançoso 2021 a receber nos seus dias mais solarengos o mais recente disco do Homem, chamado Sete Fontes. Composto por um conjunto de sete faixas, todas elas sob pronúncia de teclas, piano, ambiente e field recording, é essencial — para que se faça justiça à sua raison d’être — o ouvinte abstrair-se de tudo o que é exterior à música e focar-se exclusivamente nesta. A recompensa é assoladora e de uma beleza que, em última análise, dificilmente encontramos até nos nossos dias mais felizes. Sete Fontes acompanha-nos pelas ruas, ruelas, serras, o sol, a chuva, pelas pessoas e pelo silêncio de tudo envolto de uma mágica região de Braga. As melodias e toda a virtude de Sete Fontes é digna de ser testemunhada por quem pode, e com toda a urgência. Porra, que disco tão bonito! Parabéns, Afonso. - JMA
Howling Giant - Alteration
De Nashville – a cidade mais populosa do estado norte-americano do Tennessee – chega-nos Alteration, o novíssimo EP da recém-transfigurada formação Howling Giant (que passara de trio a quarteto). Cozinhado num chamejante, apimentado e borbulhante caldeirão onde um vulcânico, empolgante e dinâmico desert rock, um intoxicante, poderoso e alucinante heavy psych e ainda um virtuoso, fluído e sinuoso prog metal dialogam numa sinérgica fusão, este adorável registo de curta duração, mas de duradoura comoção, desdobra no imaginário do ouvinte cinematográficas paisagens de ambiência sci-fi. A sua sonoridade puramente instrumental, brilhantemente ostentosa, híbrida, envolvente e sumptuosa, ziguezagueia entre meditativas, delicadas e lenitivas passagens sulfatadas a embriagada beleza, e tumultuosas, vibrantes e rumorosas erupções carburadas a pujante adrenalina. Pendulando entre a doce letargia que nos embacia a lucidez, e a explosiva euforia que em nós provoca todo um sísmico abalo sensorial, somos fascinados e arrebatados pela expressiva beleza deste ‘Alteration’ ao longo dos seus efémeros e ingratos 20 minutos. Um dos meus EPs prediletos – dos já desabrochados até à data – está aqui, na estética, transcendente e simétrica opulência de Howling Giat. Não vai ser nada fácil experienciá-lo apenas uma vez, duas ou três. - NT
(Lê a review completa a este disco no blog El Coyote)
Mythic Sunship - Wildfire (Tee Pee)
Com base na receita musical posta em prática desde a sua fundação – que combina um imersivo, magnético e contemplativo krautrock de aroma oriental, um colorido, alucinógeno e delirado psychedelic rock de inspiração sessentista, e ainda um intempestivo, catártico e expressivo avant-garde jazz de criatividade ilimitada – os Mythic Sunship estreiam mais um novo capítulo da sua incrível e evolutiva odisseia autodenominada “anaconda rock”. Num perfeito equilíbrio entre bonanceiras passagens de envolvência edénica, mística e deslumbrante, e tempestuosos, vibrantes e furiosos ciclones onde todos os instrumentos se embrulham e amotinam numa louca orgia, a impactante sonoridade de Wildfire é condimentada e flamejada a um exótico, sónico e carnavalesco experimentalismo sem fronteiras que o espartilhem ou delimitam. De transbordante fascinação a ele atrelada e sobreaquecidos numa febril combustão, somos varridos pela sua intensa toxicidade e viajados numa estonteante, acrobática e eletrizante montanha-russa de emoções empoladas e inflamadas. Um registo de aventurosas composições que nos despistam a capacidade de leitura musical e eternizam num anárquico bacanal. - NT
(Lê a review completa a este disco no blog El Coyote)
Spectral Wound - A Diabolic Thirst (Profound Lore)
Do Québec chegam ventos frios e paisagens geladas a perder de vista. Darkthrone, Bathory e 1349 são apenas alguns dos atos que nos assaltam de imediato a mente, e é sem surpresa que quem usa Bergman e o culto do oculto como referência se consegue imiscuir tão bem no tom ríspido do mais tradicional black metal. A agressão e niilismo dos anos 90 são constantes, mas uma equilibrada mistura entre componentes old school e melodia, acompanhada de uma produção minuciosa, facilita-nos a localização no tempo. Orgânica e implacável, a percussão galopante abre caminho aos shrieks dilacerantes e riffs de guitarra massudos, instantâneos earworms dignos de qualquer pesadelo. Aqui não há samples, sintetizadores, coros ou passagens atmosféricas. Afinal, parece que a melhor maneira de se ser trve kvlt é nem sequer tentar. - AT
Tetrarch - Unstable (Napalm)
Por entre os escombros da cena musical devastada pela pandemia, surgem de Atlanta os Tetrarch. Prometem uma nova voz para o nu metal, mais forte e revitalizada, mas, acima de tudo, uma que tem algo de importante a dizer. Do quarteto, destaca-se a poderosa Diamond Rowe nas lides guitarrísticas, embebida do estilo agressivo de Mark Morton (Lamb of God) e da proficiência tecnológica-experimental de Ben Weinman (The Dillinger Escape Plan). Com Unstable, o grupo consegue um revival ao nível dos momentos altos de Linkin Park, injetando-lhe pujança sob a forma de growl. Cheio de peso e melodias que ficam facilmente impressas na memória, o disco tem tudo para proporcionar grandes momentos de intrusão entre a banda e a audiência em futuros espetáculos. - PS
The Armed - ULTRAPOP (Sargent House)
Imaginem um cruzamento entre a intensidade visceral dos Converge com a complexidade rítmica dos Rolo Tomassi, aquela atmosfera prog de tom espacial dos The Mars Volta ou mesmo a irreverência roqueira de uns METZ ou Strokes. Estranho? Talvez. Magnífico? Não há dúvida que sim. A prova está aqui, num dos mais brilhantes e apaixonantes discos do ano. Falamos de ULTRAPOP, o precioso quarto registo dos The Armed, popular e enigmático grupo de Detroit determinado a quebrar barreiras estilísticas para fazer da liberdade criativa a sua bandeira. Mais do que uma simples “desconstrução" de géneros, o que aqui temos é uma magistral colagem de vários mundos que passam, assim, a formar um só, coexistindo de forma não só profundamente excitante e vital, como surrealmente coesa. É justamente essa inteligência assombrosa, o modo como tudo flui na perfeição, que nos deixa verdadeiramente boquiabertos e incrivelmente viciados. Há pop futurista e fantasiosa, rasgos emotivos de hardcore, experimentalismos dissonantes… Acima de tudo, há uma carta de amor, escrita com suor e lágrimas, à arte enquanto mecanismo de expressão e reinvenção. Desafiante e simultaneamente catchy, ruidoso sem descurar a melodia, ULTRAPOP é o som do presente a apontar o caminho para o futuro. - JA
Artigo escrito por: Andreia Teixeira (AT), Beatriz Fontes (BF), Hugo Moreira (HM), João “Mislow” Almeida (JMA), Jorge Alves (JA), Nuno Teixeira (NT) e Pedro Sarmento (PS).