É só quando se realiza mais uma edição de Amplifest que somos relembrados de quanta gente cabe realmente no Hard Club, apesar do espaço se aparentar de uma pequenez elusiva. Gentes de todos os cantos do globo, de todos os tamanhos e envergaduras, de línguas e dialetos variados – todos tão diferentes e, no entanto, tão indistinguivelmente iguais sob o contexto desta enorme experiência. Passados três longos anos, reúne-se novamente toda a Amplifamília para celebrar, em torno da sinalização do término de um período pandémico que nos retirou a música ao vivo da mesma forma que se privam os pulmões de oxigénio, o retorno ao que já nos tinha ficado mais que devido: o ambiente inclusivo e amigável, o corredor com as bancas tentadoras de merch e vinil, os concertos que enchem salas independentemente da capacidade grandes ou pequena, e o convívio animado entre pessoas que partilham a mesma saudade por este eclético festival. Ora, haverá melhor forma de comemorar o regresso do Amplifest do que com fim-de-semana redobrado? Haverá sim, diriam os organizadores do evento: dos habituais dois dias de grande música, que se façam três. Dito e feito, foi assim que, ao início de tarde de uma sexta-feira solarenga, se abriram as portas a um público de ouvidos sedentos e almas melómanas. Quem se julga em engano por sentir que o festival começou mais cedo que o habitual, desenganado está, pois pouco depois das 13h, e com o espaço já generosamente preenchido, se abriam as cerimónias com o documentário “Amenra: A Flood Of Light”.
Por norma, as surpresas guardam-se para o fim. Sorte a nossa que o Amplifest não se rege pela norma. Passava um quarto de hora das 15h quando se deram os primeiros passos no palco principal – o Bürostage. A atuação mistério revelou-se perante os holofotes como ninguém menos que A.A. Williams, acompanhada da sua banda, a apresentar o seu novo álbum As The Moon Rests, saído no próprio dia. A própria não escondeu o seu espanto e admiração ao notar que uma plateia já considerável tinha vindo marcar presença numa atuação até então desconhecida. Que valeu a pena comparecer será escusado dizer, não o confirmassem logo as guitarras com fome de agressão, a passada de post-rock envolto numa aura de tensões que ameaçavam quebrar a qualquer momento, e a voz de Williams, tanto tímida num momento como empoderadora no seguinte. Pouco depois, na Beerfreaks Stage, estaria Jo Quail a argumentar que do pouco se faz muito, se for essa a vontade. A trabalhar apenas com um impromptu de loops hipnóticos e um violoncelo que se mostrava tão apto como instrumento de cordas como de percussão, a compositora londrina não só proporcionou um set avassalador e denso como ainda fez questão de provar o quão dinâmica e engenhosa consegue ser.
Ao voltar para o Bürostage, estaria o sludge industrial nacional dos Process of Guilt a proporcionar os primeiros exercícios de aquecimento para o pescoço. Perante a escala a que se fez soar, o novo disco Slaves Beneath The Sun não demorou a chamar para dentro quem ainda não tinha arredado o passo da esplanada. No entanto, onde realmente se viria a sentir a necessidade para testar os tampões de ouvido, abençoado quem os tivesse, foi na performance absolutamente demolidora dos Vile Creature. Sejamos sinceros: é verdade que esta Beerfreaks Stage é mais pequena, mas, irrelevante esse facto, também é verdade que o duo (trio ao vivo) canadense fez questão de a encher com quanta gente lá cabia. Pelo final, já se dava como conquistada a audiência eufórica com o doom experimental pungente de gritos ensurdecedores que exigiu uma salva de palmas ressoante. Após a curta mas necessária pausa de 15 minutos entre concertos, dirigiam-se as massas aos palcos onde, com um membro em falta, os Amenra se adaptariam a uma atuação em moldes acústicos. Mesmo com o baixo de Tim de Gieter ausente, o público prendeu-se que nem estátuas, com olhos em pedra, no triste candor sentido em cada sílaba pronunciada. O que se perdeu em contundência, foi recuperado numa atmosfera de serenidades enegrecidas e contudo tão belas.
Daí a pouco já se voltava ao palco de menores dimensões – o Beerfreaks Stage –, para apreciar a voz cristalina e algo sintetizada de Midwife. Foi com a sua abordagem shoegaze meets slowcore que, através duma limitada gama de sonoridades elementares e agridoces, Madeline Johnston cortou os sabores mais pesados e opressivos das atuações anteriores. O ecletismo pelo qual se conhece o Amplifest viria novamente a ser comprovado com o duo que seguiu: eram Will Brooks e Mike Manteca, sob a designação de Dälek, a trazer o melhor do hip-hop experimental/industrial à tona. Após 5 anos sem material novo, o duo de Newark presenteou-nos este ano com Precipice, justificando as suas longas demoras num álbum que foi retrabalhado durante a pandemia. O resultado deixou-se falar por si, com a sala rendida às batidas eletrónicas que caíam como martelos e às barras incisivas que penetravam por entre o peso do bass. Antes de se dar a primeira noite como encerrada, houve ainda outra boa surpresa, proporcionada pela fusão de noise, hardcore e eletrónica com distorção amplamente potenciada dos Prison Religion. Com as atenções centradas no centro da sala, agora mais assemelhada a uma boiler room improvisada, se havia alguém que não se estava a mexer por entre o caos sónico que se originava nas tábuas de som e nas strobelights de tons monocromáticos, era simplesmente porque o cansaço já não o permitia.
Dia 1
Dia 8
Sábado anunciou-se prometedor. O típico sol na esplanada, uma temperatura convidativa, e a prospeção de uma memorável dose de boa música desde os primórdios da tarde até que a madrugada se afirmasse foram fatores mais que suficientes para que, à meia-hora, já se abrissem as portas a um público saudável que assistia a, “A Wandering Path”, o documentário reservado a este dia. Entretanto, os ponteiros já tinham dado duas voltas completas à circunferência do seu respetivo relógio quando o primeiro concerto do dia se preparava para despontar. Pallbearer, empunhados da sua instrumentação que nos comunicava numa eloquência vagarosa e algo melódica, providenciaram os ocupantes da sala 1 com um doom metal de passada mais branda, apesar dos seus momentos mais espevitados fornecerem picos de tensão contrastantes. Coesão não lhes faltou, como também não iria faltar ao post-metal atmosférico dos Telepathy. Ainda que o concerto fosse mais curto do que a expectável hora de que, até então, cada artista havia disposto, a consistência do que se ouviu, assim como a solidez de cada membro no seu respetivo ofício, não deixaram quaisquer razões para queixa. Ainda em cadências similares vieram os Elder mostrar como é que se faz um stoner doom de raízes psicadélicas. Já a contar com uma mão cheia de álbuns e experiência vasta no jogo dos tempos e contratempos, os riffs de longa escala e compassos expansivos foram argumentos válidos para a transe em que a audiência permaneceu até ao final.
Para acordar de uma potencial monotonia que se ameaçava aproximar devido a três atuações situadas em secções rítmicas particularmente semelhantes – tais são as características que o post-rock, stoner e doom partilham –, o que se pedia agora era uma injeção de cafeína na veia. A responder à chamada à ação vieram os Irist, que despontaram o público com uma agressividade bem mais direta e presente, ampliada por capacidades técnicas que o prog de alta voltagem sempre pede. Foi curto e com pouquíssimas pausas para repouso, mas repouso era bem o que se precisava, porque em meros momentos o palco principal pertenceria aos colossos belgas Brutus. Entre a performance irrepreensível e inspiradora do trio, os holofotes que brilhavam com quanta força tinham, e o ambiente vívido e reluzente que as ondas de som transpiravam, não se deu como surpresa alguma quando, pelo final purificador e emocionalmente esmagador, se ouviu o aplauso mais aquecido do festival até ao momento, com uma audiência totalmente rendida ao enorme espetáculo multidisciplinar que se tinha dado. A extenuação anímica pedia uma premissa para recompor os sentidos, e nessa vertente tivemos de seguida O Gajo a dedilhar por entre as cordas da sua viola campaniça no que foi uma hora bem passada e esplendidamente amigável. A viagem medieval e de sabores longínquos em que o enorme talento de João Morais levou os demais teve ainda os seus momentos teatrais e cómicos, cujos quais aproximaram ainda mais quem fazia a arte de quem a apreciava.
Há quem afirme que o melhor que o black metal tem para oferecer origina das regiões nórdicas da Europa, e se os fundamentos dessa observação passassem singularmente pelos finlandeses Oranssi Pazuzu, não haveria como denegrir o facto. A distorcer as fronteiras do género com sintetizadores sinistros e psicóticos, em acrescento às batidas complexas sobrepostas num pano de fundo obscuro e alienígena, a passagem do grupo pelo Amplifest foi sem dúvida uma das mais aclamadas, a confirmar pela enorme salva de palmas que conseguiram arrancar de uma multidão encolerizada. Pouco tempo depois, Fotocrime virava as ambiências do avesso, procurando encantar a sala já algo mais arejada com um clima de texturas post-punk e synthwave que, apesar de cair nas tentações genéricas do género em ocasiões soltas, criou no todo um momento mais leve e dançável para quem precisasse de desanuviar. Ora, com o segundo dia de festival prestes a fechar, e com os corredores já mais desimpedidos, podemos apenas dizer que quem não fez o favor a si mesmo de dar uma hipótese a Putan Club, não sabe o que perdeu. Para quem ainda não tinha desistido da noite, foi uma hora e picos de techno, industrial, jazz experimental, metal de todas as cilindradas e ainda aromas de world music (entre muitos outros), combinação esta altamente inflamável e energética, por conseguinte a drenar por completo as últimas forças que persistiam. A julgar pelo público, todo ele a mexer pela sala à medida que o duo perfurava por entre o coração denso das plateias, o prémio de concerto mais divertido, fictício mas necessário para ênfase, encontrava um vencedor indiscutível.
Dia 2 - Parte 1
Dia 2 - Parte 2
Dia 9
Eis que a primeira ronda do Amplifest chega ao seu último dia, de pernas já pesadas mas ainda com muita coisa incrível por se ver e ouvir. Domingo carece da boa disposição temporal dos dias anteriores, o frio começa a trepar e pressagiam-se uns chuviscos lá pelo final da tarde. Porventura factos irrelevantes, visto que a ação decorre estritamente indoors por aqui. Como sempre, tudo se principia num saudável documentário, desta vez com etiqueta nacional: “Redemptus: Nothing’s Gonna Wake You Up Like Suffering”. Seguiu a procissão para a Beerfreaks Stage, onde dentro de instantes, Wolves In The Throne Room se preparavam para destruir o recinto com uma parede de som atmosférica e repuxada, como é de esperar de um black metal místico e composicionalmente endurecido. Não demorou muito até que a plateia se sincronizasse com os blast beats cáusticos e as ocasionais melodias de cariz transcendente. Ouviram-se os merecidos aplausos antes de mudarmos de engrenagens para algo mais analógico, como só Clothilde o poderia fazer. Num casaco escuro que refletia em pequenos pontos os feixes de luz simpáticos que os holofotes produziam, Sofia Mestre atuou de costas para o público, porventura para que todos pudéssemos apreciar a classe e estética macia das suas máquinas. Num ato único e sem paragens, os olhares atentos de uma sala airada aguardavam pacientemente por cada mudança nos ciclos reverberados.
Os únicos a terem direito a moshpit e crowdsurfing, ainda que esporádicos, foram os franceses Birds In Row. A regressar estrondosamente aonde já foram anteriormente muito bem recebidos, e com novo álbum intitulado Gris Klein a sair cerca de uma semana após a sua estadia no Porto, o trio apresentou maioritariamente faixas do mesmo, interpolando aqui e acolá com os temas mais icónicos do prévio We Already Lost The World. A crueza das texturas implacáveis em que o grupo se movimentou viriam a ser elevadas na sala contígua, com os galegos Tenue a arrastarem tudo e todos pelo caminho com o seu crust punk despojado de complexidades, mas em contrapartida abastecido de uma irascibilidade incontornável. Já com uma dose adequada de peso bruto nos ouvidos, começaram as migrações para o palco principal, e cedo, porque para apanhar as lendas de post-rock Caspian, atrasos são como crimes. Pouco se poderá dizer que já não seja esperado de um concerto deste calibre – sereno, espirituoso e épico, se meras palavras satisfazem a descrição. Já pelo final, sentia-se uma catarse inevitável, como se da alma nos tivesse saído um peso cataclísmico.
Patrick Walker assegurou um início de serão pacífico e convidativo e, de guitarra na mão, sugeriu que nos puséssemos confortáveis perante as suas rendições acústicas sentidas em conjunto com a sua voz honesta que, sem dúvida alguma, se sintonizou nas ondas emocionais de quem se atrevia a deixar-se encantar. Mas ainda faltavam duas atuações antes da derradeira despedida – aliás, mais como um até já, que para a semana haveria mais –, e para muitos dos presentes, o que se seguia era o grande nome da noite. Falamos, claro está, dos exímios Cult Of Luna, que viram a sala diante do palco principal cheia como mais ninguém havia até então visto. O set mais alargado destes três dias contou com faixas do mais recente The Long Road North, mas também fez a sua vénia a trabalhos anteriores como A Dawn To Fear. Tudo se alinhou: desde a ferocidade com que cada arranjo era espoletado numa gama de decibéis arrepiante, até à atmosfera dominada pelo fumo espesso e espetáculo de luzes fenomenal (ainda que algo exagerado em momentos muito esparsos). Difícil seria acabar este primeiro fim-de-semana de melhor forma, tarefa essa que caberia à sueca-norueguesa Karin Park, a fechar o Beerfreaks com um polivalente estudo de fiações synthpop e indietronica. A artista que veio substituir a ausência dos Holy Fawn deu tudo por tudo, ainda que a sala já tivesse perdido alguma da sua densidade – infelicidade de que sofrem os últimos dos últimos. Não obstante, terminava assim a primeira metade do Amplifest num tom que apesar de incomum à estética, foi bem aclamado por quem ficou até ao fim.
Tudo o que é bom eventualmente acaba, e o Amplifest, ainda que fuja a muitas regras, dessa não se escapa. Num circuito pós-pandémico, é de admirar o esforço e dedicação com que tudo o que foi tão bem conseguido, ainda que algumas imperfeições tenham vindo à tona – nomeadamente no que toca à agregação de atuações de géneros e ritmos muito idênticos em sucessão, como foi o caso da tarde do segundo dia. Não se nega que, no geral, se denotou uma interação relativamente mais ausente e parada por parte do público, como se o leve véu letárgico tecido ao longo de três anos sem festivais ainda estivesse a encobrir parcialmente muitas cabeças. Contudo, tudo isto são observações microscópicas quando as deparamos com o amontoado de boas recordações que certamente irão reservar o seu próprio canto nas memórias da família Amplifest. Que mais dizer? Que o próximo ano prometa mais do mesmo. O povo lá estará.