Dia 13
Depois de um intenso primeiro fim de semana, chegou-se ao segundo a pensar na aventura surreal que esta edição representou, uma celebração épica e eufórica para contrariar e fazer esquecer todo o clima de desolação que a pandemia insistiu em instalar. E se a duração da festa poderá ter cansado quem a viveu na totalidade, a verdade é que a ideia era mesmo aproveitá-la ao máximo para mais tarde recordar, de preferência com nostalgia e satisfação. Felizmente, não faltaram momentos dignos de serem imortalizados nos arquivos da memória, a começar logo pelo concerto de abertura, o dos Shy, Low. Oriundos de Richmond, Virginia, encantaram pelo modo como cruzaram o peso exuberante do post-metal com as melodias sonhadoras e atmosféricas do post-rock, permanecendo firmes entre a delicadeza e a exultação. Podem não inovar necessariamente, mas a garra e a qualidade das composições fizeram deles uma das revelações do festival. Quem também esteve muito bem foi Luís Fernandes, que gradualmente foi construindo uma envolvente “teia” de eletrónica fragmentada, minimalista e dotada de um impressionante caráter visual, em que bastava fechar os olhos para que aqueles sons “alimentassem” uma empolgante viagem onírica. Muito bom, sem dúvida.
Logo a seguir, a muito aguardada estreia dos norte-americanos Cave In constituiu um momento de genuína comunhão entre banda e público. Arrancando com “New Reality”, uma das mais excitantes e irresistíveis malhas da novidade Heavy Pendulum, o veterano grupo liderado por Stephen Brodsky (que agora conta com o lendário Nate Newton na sua formação), ofereceu uma atuação divertida e bem pujante, ali entre a força de um hardcore “rasgado” e uma atitude rockeira deliciosamente despojada. Só o som baixo das vozes, sobretudo no início, afetou a prestação, mas nem isso foi suficiente para arruinar a boa disposição da banda, expressa nos sorrisos exibidos em palco que confirmavam como a ocasião era claramente especial. E juntamente com a diversão veio também uma passagem introspetiva especialmente tocante, quando o coletivo dedicou a lindíssima “Wavering Angel” (tema melódico de uma fragilidade indescritivelmente comovente) a todos aqueles que a pandemia afastou prematuramente, não faltando ainda a sentida homenagem a Caleb Scofield, o ex- vocalista/baixista que tragicamente partiu há quatro anos. No Amplifest, marcou presença em espírito, porque a memória do seu legado jamais será esquecida.
Menos convincente esteve Caspar Brötzmann, que embora seja fantástico com os seus Massaker, não conseguiu reunir o mesmo impacto quando atuou a solo, na companhia das frequências graves do seu baixo. Um caso de um excelente instrumentista - a comemorar o seu sexagésimo aniversário neste dia, acrescente-se - que simplesmente precisava de outro “formato” para brilhar. Já os SUMAC - trio de sonho formado pelo prolífico Aaron Turner, por Nick Yacyshyn dos Baptists e por Brian Cook dos Russian Circles, aqui substituído por Joe Preston - mostraram-se indiscutivelmente superiores. Apostando numa brutalidade dissonante incrivelmente viciante, debitada de forma tão impetuosa como requintada, assinaram o primeiro grande concerto do dia, devastando o corpo e a alma de quem por eles se deixou dominar. Aaron Turner continua a ser um exímio explorador dos limites sonoros e emocionais da distorção (aliás, voltaria a prová-lo dois dias depois, quando atuou a solo), ao passo que Nick é um mago da percussão, nervoso e implacável no seu ataque à bateria, num perfeito equilíbrio entre destreza e imaginação. Nesta noite, não há como negar, os SUMAC foram reis.
Contudo, uns minutos depois, no palco Beerfreaks (Sala 2), registou-se outro momento formidável: a estreia em Portugal dos Buñuel, projecto liderado pelo inconfundível e carismático Eugene Robinson (OXBOW). Este senhor é sempre uma força da natureza , tão hilariante quanto intimidante, nunca se mostrando moderado nos comentários que tece mesmo quando estes entram pelo campo sexual. Mas há mais em Eugene do que um desinibido frontman: há também um cantor poderosíssimo, que ora inquieta quando a música evolui para uma espécie de spoken word maldito e tenebroso, ora comove quando dá voz a um post-punk potente, irreverente e festivo, ali a recordar os ambientes irrequietos dos Algiers. Figura inigualável, poeta animalesco transcendente, teve a inteligência de se fazer acompanhar por uma banda igualmente fantástica. O resultado? Um concerto intenso, suado, contundente e altamente inspirador. Urge regressar.
Quanto aos Deafheaven, foram os headliners deste dia, mas a verdade é que acabaram por desiludir. Muito já se escreveu sobre o mais recente disco do grupo (Infinite Granite), que apesar de dividir opiniões é honestamente uma obra gratificante de shoegaze luminoso, mas ao vivo a banda não conseguiu recriar a magia desses temas. Não por culpa do instrumental, que esteve excelente, mas porque George Clarke ainda exibe notórias fragilidades quando chega a altura de os cantar, essencialmente por não conseguir projetar bem a voz limpa. Visivelmente mais confortável no habitual registo “berrado”, era aí que se refugiava quando interpretava canções como “Shellstar” ou “In Blur”, apesar de tentar “disfarçar” ao cantá-las tanto quanto podia. No entanto, tudo soava estranho e forçado, sendo que dava para entender o desconforto do próprio no modo como se “escondia” nessa familiaridade vocal que assim o protegia. Todavia, mal passaram para a primeira das recordações, através da sublime “Honeycomb”, tudo voltou ao normal, a justaposição entre a frieza dilacerante de um black nebuloso e a melodia atmosférica do shoegaze a produzir resultados admiráveis. Não se trata de uma crise identitária, como alguns poderão sugerir, apenas uma necessidade de adaptação: no fundo, aquilo que os Deafheaven são hoje em estúdio - uma banda de shoegaze enérgica e musculada - precisa de ser melhor refletido em palco. Quando isso acontecer, voltarão a reencontrar a química perdida.
Fechar o dia com Jessica Moss parecia uma aposta arriscada , tendo em conta o nível de intensa contemplação que define a sua obra, mas a violinista canadiana - que já pertenceu aos magníficos Thee Silver Mt. Zion Memorial Orchestra - foi responsável por um dos mais agradáveis e revitalizantes concertos do dia. Convidando o público que progressivamente ia preenchendo a Sala 2 a sentar-se - uma escolha sensata para melhor apreciar este ambiente de reflexão -, Jessica serviu-se de melodias evocativas e encantadoras para embalar a audiência e transportá-la para o impressionismo emotivo do seu universo. Um concerto que pela intimidade mais parecia um ensaio aberto, e que criou um clima notavelmente enternecedor. Na hora de ir para casa, a alma descansava tranquilamente.
Dia 13
Dia 14
O dia 2 do segundo fim de semana do Amplifest revelou-se bastante rico a nível de descobertas e confirmações, pois logo a começar houve essa bela revelação que foram os franceses Bruit ≤. O coletivo de Toulouse até iniciou a sua atuação de forma algo tímida , mas rapidamente conseguiu que o seu post-rock de influências clássicas ganhasse “vida” e florescesse. Discípulos diretos da sensibilidade orquestral dos Godspeed You! Black Emperor, têm no último tema que interpretaram - “ The Machine Is Burning” - a sua mais fogosa e triunfal composição, deslumbrante explosão de intensidade etérea. Pelo meio houve agradecimentos sentidos à organização pela decisão de apostar neles, e a certeza de que se brevemente cá estarão novamente, pois o potencial do quarteto para um dia ser uma das mais aliciantes e dinâmicas propostas do género está claramente lá… É tudo uma questão de tempo. De volta ao Beerfreaks, na sala mais pequena, Tashi Dorji concebeu uma das mais fulgurantes sessões de noise esotérico que aqui se viu. Música de improvisação tão espiritual quanto extrema, ali a relembrar a impetuosidade demoníaca do mestre Keiji Haino, sentindo-se no trabalho de ambos uma abordagem quase ritualística ao ruído. E como se a sua presença não fosse suficiente, Nick Yacyshyn dos SUMAC juntou-se ao guitarrista do Butão para uma união inédita e totalmente improvisada, adicionando uma preciosa riqueza rítmica que quase levou este concerto para o território de um free jazz marado e distorcido. Não foi, de todo, a prestação mais consensual do festival, mas para quem curte um noise pungente e ousado, teve aqui um belo banquete.
O que se seguiu foi um dos mais emocionantes e inesquecíveis momentos da história do Amplifest. Era tempo para a revelação da segunda banda surpresa do festival , e depois de circularem rumores devido à inclusão de um certo nome no painel que decorava o corredor central do Hard Club , e no qual se podiam ver as bandas que preencheram os eventos da Amplificasom ao longo dos anos, veio a confirmação: eram mesmo os Liturgy, que imediatamente brindaram o público com uma atuação verdadeiramente esmagadora, estrondosa entrega de um black metal verdadeiramente transcendente que soa tão mágico e melódico, como violento e inexorável. A voz de Ravenna Hunt- Hendrix é de uma força descomunal, arrepia ao mesmo tempo que parece comunicar uma vulnerabilidade intrigante, como uma dor que se liberta para encontrar conforto na catarse, e o trabalho de precisão maquinal de Leo Didkovsky na bateria só fortaleceu uma atuação já antes grandiosa . Sem dúvida alguma, a mais perfeita surpresa que a Amplificasom podia dar, e um concerto de uma emoção surreal. Ficará na memória, e no coração. De William Fowler Collins sabia-se que era colaborador do mítico Aaron Turner e esperava-se que desse, pelo menos, um concerto interessante, mas a verdade é que o senhor acabou por superar as expectativas ao protagonizar uma atuação espantosamente satisfatória e envolvente. Talvez tenha sido a entusiasmante aparição de Tashi Dorji umas horas antes a instalar o mood para estas íntimas explorações sonoras, mas o modo como o senhor navegou por um ambient cândido, de forte sentimento cinemático, para posteriormente cultivar um noise intempestivo e irrequieto foi honestamente entusiasmante, parecia uma escultura cuidadosamente pensada e gradualmente construída com fragmentos de sons em estado bruto. Muito bom, a repetir.
Já no Bürostage (Sala 1), os Indignu apresentaram os temas do novo “Adeus”, elaborando um espetáculo de post-rock de sabor telúrico e palpavelmente português inegavelmente imaculado, polido mas com a dose certa de paixão para evitar que tudo se tornasse musicalmente estéril. Contudo, foi de volta ao palco Beerfreaks que se assistiu a um dos mais antecipados momentos do dia no campo das bandas promissoras: a estreia em Portugal dos Spectral Wound, malta canadiana que evoca o legado do black metal gélido e cortante que se fazia no infame underground norueguês da década de 90. Quem cresceu a venerar as obras seminais dos Darkthrone ou Mayhem embarcou aqui numa esplendorosa viagem revivalista, incrivelmente autêntica na recriação da negra irreverência sonora que definia a cena original. Imponentes e avassaladores, transformaram a Sala 2 num santuário de celebração infernal para mostrar que a tradição ainda pode ser o que era, e que é possível ser feita com a mesma paixão orgânica de outrora. O mesmo se pode dizer dos escoceses Hellripper (que, aliás, andavam em tour com os Spectral Wound), estes ainda mais magistralmente old school que os primeiros. Pegando na selvajaria endiabrada dos Venom - por outras palavras, naquele black metal rebelde que ainda hoje soa intocável - e adicionando uns toques da garra jovial de uns Metallica da era Kill 'Em All (havia mesmo músicas que ao início quase que pareciam covers, e essa semelhança é um elogio e não uma acusação), os Hellripper contagiaram pela genuinidade refrescante de uma fórmula assumidamente tradicional… O stage diving constante que o diga.
Pelo meio houve o retorno de Anna Von Hausswolff, artista sueca que tinha feito a sua estreia por cá neste mesmo palco e que nesta noite foi rainha absoluta. Porquê? Porque ofereceu um dos mais impressionantes e sublimes concertos não só do Amplifest, como de 2022. Começando num tom denso de cores minimalistas e evoluindo para uma odisseia sonora transversal a géneros - da folk fantasiosa ao pós-clássico divinal, passando pelo prog aventureiro, entre muitos outros - , Anna delineou uma atuação de uma perfeição indescritível: desde a voz majestosa que projetava com toda a capacidade dos pulmões e da alma, ao sentimento eclesiástico das suas assombrosas composições, encantou e comoveu, o coração a deliciar-se com a magia infinita de toda aquela beleza estonteante. Na verdade, pode-se mesmo dizer que, mais do que um concerto, isto foi uma experiência - sensorial e emocional , graciosa e hipnotizante. Com um setlist variado, que até incluiu incursões pelos instrumentais de “All Thoughts Fly” ou mesmo uma canção inédita, Anna Von Hausswolff foi a mais esplêndida de todos os headliners deste fim de semana, encontrando-se indiscutivelmente num nível só dela. Um anjo prodigioso que, por breves momentos, soprou amor sobrenatural no Hard Club. Inesquecível.
A fechar o dia , os norte-americanos Bongripper encheram a sala principal de um doom instrumental pujante e esmagador, espécie de montanha gigante de riffs colossais que arrasava a alma e punia os ouvidos. Em teoria tudo isto soa excitante para quem curte uma riffalhada monumental, e na prática também o foi, apenas teria sido ainda mais revigorante se tivesse ocorrido um pouco antes - por exemplo, ao início do dia. Seja como for, não passa de um pequeno apontamento que não afetou a qualidade desta brutalíssima despedida, até porque no regresso a casa os ouvidos ainda zumbiam… mesmo depois de se usar earplugs. Se isto não prova a “jarda” que foi este concerto, então nada o fará.
Dia 14
Dia 15
Último dia do que foi uma verdadeira odisseia, o cansaço acumulado a fazer-se sentir com mais intensidade do que antes; todavia, a certeza de que vários momentos memoráveis ainda estavam para vir fornecia toda a motivação necessária. E esses momentos vieram logo ao início, quando Lingua Ignota subiu ao palco perante uma sala cheia, eram apenas duas da tarde. E o que aqui se viu não foi bem um concerto, antes um ritual arrepiante de uma catarse violentíssima - para ela e para a audiência. Com um conjunto de castiçais a iluminar o palco, a chama não abrandou em nada a escuridão penetrante e perene que o alter ego de Kristin Hayter instalou. Exibindo sem pudor as feridas abertas de traumas irreversíveis, carrega consigo as memórias dolorosas dos horrendos abusos físicos e sexuais que até hoje a atormentam, e que exterioriza através de voláteis vozes angelicais ou berros desconfortavelmente agonizantes, tão tocantes que até provocam o choro. Durante pouco mais de uma hora a artista norte-americana caminhou pelo palco- e, a certa altura, pelo meio do público- enquanto deixava, na maior parte do tempo, o piano a tocar notas assombrosas que mais soavam à banda sonora de um exorcismo em tempo real, num concerto de tal forma visceral que chegou mesmo a assustar. Adotando um cenário altamente dantesco, até pela presença de uma forte componente religiosa na arte que produz , percorreu o seu próprio Inferno de Dante sem nunca vislumbrar o Paraíso, pois uma dor destas nunca desaparece realmente. No final, entre a vontade de aplaudir e de a abraçar, tentava-se processar toda esta beleza singular.
Logo a seguir, na Sala 2, os britânicos Bossk protagonizaram o seu regresso a um evento da Amplificasom depois de terem passado pela Fábrica de Som no já distante ano de 2007. Mas não se pense que o grupo de Ashford, Kent é um símbolo do passado sem valor contemporâneo, pois assinou uma das mais dinâmicas e estimulantes atuações deste dia, numa dose de post-metal/sludge tão pujante e incendiário quanto deliciosamente sonhador. Fabulosa descarga de energia imparável numa sala a abarrotar - foi entusiasmante testemunhar algo assim. De volta ao Bürostage, Peter Broderick alternou entre a guitarra e o piano para conceber uma elegante exibição da sua sonoridade maravilhosamente luminosa e caleidoscópica, que atravessa as fronteiras da folk e da pop para desaguar num ecletismo coeso e apaziguador, e que só “falhou” (entre aspas porque o senhor até esteve bem) por não ter tido exatamente o ambiente sossegado que merecia. Na verdade, a própria organização circulou pela audiência para requisitar um pouco de silêncio, e num festival onde as pessoas vão pela música, essa necessidade acaba por ser lamentável. Tirando isso - e a sensação de que toda esta aprazível intimidade sonora devia ter iniciado o dia antes de Lingua Ignota -, não há como negar que Broderick é um exímio intérprete e compositor.
Depois de ter arrebatado o público com os seus SUMAC, Aaron Turner fez uma segunda aparição, desta vez a solo, para uma arrojada sessão de um noise opulento e intensamente selvagem, ali a recordar a desconstrução surrealista de Tashi Dorji (com quem, aliás, colabora), mas com maiores vestígios de um metal obscuro e visceral, não muito diferente daquele que debitou dois dias antes . Foi semelhante, contudo, ao de Dorji no modo como também procurou a adrenalina do experimentalismo sem limites, “atacando” veementemente a guitarra para dela extrair sensações devastadoras. Ruidoso e inventivo num formato quase místico, transportou a audiência para a pureza de uma outra dimensão.
E, finalmente, eis que aconteceu: a estreia em Portugal dos japoneses Envy, veteranos que este ano comemoram três décadas de existência. Num concerto bem aceso e recheado de emoção pura, espalharam a exuberância de um screamo/ post-hardcore apaixonadamente abrasivo e poético na sua inquietação, ao qual adicionam referências à linhagem do post-rock para obter ainda mais encanto melódico. Robustos e simultaneamente sensíveis, deixaram no ar o desejo de uma segunda visita. Numa agradável incursão por sons mais etéreos, o austríaco Fennesz- nome lendário e obrigatório no mundo da música experimental das últimas duas décadas - elaborou uma apoteótica viagem por uma eletrónica tão abstrata quanto atmosférica, numa espécie de futurismo sonoro intimamente espiritual. Entre uma suntuosa maquinaria, laptops e o uso occasional da guitarra, o analógico e o digital fundiram-se para criar uma linguagem harmoniosa, que no meio de possantes ruídos eletrónicos, muitas vezes no limiar da mais crua emoção transparente, transmitia sensações profundamente humanas e libertava uma luz quente, por vezes quase angelical. Entre o vigoroso e o dócil, Fennesz encantou.
Era então hora de acolher os Godspeed You! Black Emperor, de regresso após uma espetacular estreia no Amplifest no já longínquo ano de 2012. E se muito já se falou por aqui de bandas que constroem autênticas esculturas sonoras , talvez nenhuma encaixe tão bem nessa descrição como este ensemble canadiano, que através das suas famosas projeções faz da imagem e do som um veículo único de genial expressão artística. É certo que se revela crucial estar no estado de espírito certo para apreciar estas delicadas “instalações”, mas o cuidado e atenção com que cada composição é lentamente construída só pode ser descrito como fascinante - uma evolução gradual de intensidade sonora e emocional absolutamente magistral. Cada canção da banda de Montreal assemelha-se, na verdade, a uma estátua de pureza sensorial: há pequenos filmes que passam no ecrã, sons majestosos a acompanhá-los e , no final, ergue-se uma infinita paisagem melancólica, mas ainda assim esperançosa, de magnífica inspiração neoclássica abraçada a uma distorção “gritante” e emotiva, como se a escuridão e a luz batalhassem eternamente entre si. Viajando por toda a sua história - desde o presente até obras intemporais como Lift Your Skinny Fists Like Antennas to Heaven - ,os Godspeed You! voltaram a deslumbrar.
Após a contemplação veio a diversão, e quem melhor para esse papel do que o grande Scúru Fitchádu? Numa demonstração de impressionante vitalidade, o grito irreverente da fúria punk associou-se à eletrónica subversiva e à riqueza da tradição do funaná para uma celebração urgente e frenética de corpos dançantes. O cenário era mesmo este - uma sala ao rubro a absorver cada segundo de uma festa que é também grito de libertação, som revolucionário que o mundo atual tornou urgente, e que respira paixão em cada grito expresso em crioulo. Não é polido, é cru e lo-fi, sem papas na língua na sua orgulhosa mensagem antifacista. Acima de tudo, nasceu para ser sentido no calor de uma comunidade unida, na intimidade de um underground fervilhante, e foi isso que aconteceu nesta noite gloriosa, na noite em que Scúru provou - como se dúvidas existissem- que é um dos mais genuínos e originais artistas da atualidade.
A fechar, o britânico The Bug regressou a Portugal na companhia de Flowdan para destilar doses pujantes de eletrónica marada a um volume sempre elevado , naquele cruzamento de dancehall, industrial e noise absolutamente fodido e ensurdecedor que procura incansavelmente a excitação da transcendência máxima. A dança é basicamente aqui usada como fonte de catarse, plataforma de acesso aos locais da mente que aniquilam o aborrecimento e conduzem ao êxtase. Nesse sentido, há que dizer que quem o viu no passado- no Milhões de Festa, por exemplo- , rapidamente se apercebeu que o senhor já “abusou” muito mais do volume, mas não deixou de tocar bem alto e de forma viciante, aquelas batidas a perfurar a pele como balas disparadas por um mortífero sistema de som. Flowdan, de resto, permanece um MC imponente, o seu timbre austero mas potente a “desenhar” uma aterradora sensação de perigo iminente, sobretudo nos temas do recente Fire. Contudo, numa verdadeira surpresa, também Miss Red apareceu no final, expondo toda aquela garra de sabor exótico que sempre fez dela uma figura incrivelmente carismática. Depois deste “docinho”, era impossível regressar defraudado a casa.
Dia 15