
Dia Um
Passam poucos minutos das três da tarde e um vento norte sopra por toda a extensão da praia de Matosinhos, onde há quem se divirta a jogar andebol enquanto outros tantos se questionam sobre onde estará o sol. Turistas e autóctones fotografam os barcos e as miragens de barcos que, ao longe, pintalgam o azul do mar. Crianças comem e dividem gelados e são travados antes de atravessarem a estrada sem olhar. Longe destes sinónimos de uma vida normal, milhares de pessoas preparam-se para dar entrada no NOS Primavera Sound, que cumpriu este ano a sua sexta edição com um cartaz ao nível de sempre: muito luxo indie, dois ou três nomes inescapáveis e um ecletismo sem paralelo a nível nacional. Talvez seja mesmo por isso que atraia milhares de pessoas; os passes uma vez mais, voltaram a esgotar. Ou talvez não seja por isso, e sim porque se tornou num ponto de passagem obrigatório para quem reside no Porto e subúrbios – um Rock In Rio com outro sabor, que famílias mais cultas poderão visitar sem estranhar, ao mesmo tempo que fazem fila para obter uma coroa de flores.
Dizia assim, a canção: If you're going to San Francisco, be sure to wear some flowers in your hair..., lema que é de pronto adaptado e adoptado por quem entra no recinto. NOS Primavera, a São Francisco dos hippies do século XXI. NOS Primavera: o tempo vai aclarando progressivamente e, junto ao palco Super Bock, estendem-se já algumas toalhas, e alguns rabos nessas mesmas toalhas, e alguma cerveja nas mãos que fazem parte do mesmo corpo que esses rabos nas toalhas. O concerto de Samuel Úria só se iniciaria às 17h, mas há sempre quem aproveite para descansar um pouco, digerir o almoço. Já aquele que é um dos maiores rockers portugueses veio até ao Porto para dar um concerto para os amigos, que na verdade parecem ser toda a gente, tal é a boa disposição que mostra. Acompanhado por uma banda feérica, Úria abriu as hostilidades com canções de um trato notável, destacando-se “Teimoso” (onde afirma, a pés juntos, que nunca foi do prog rock esquecendo-se, talvez, que os King Crimson são do caralho) e “Lenço Enxuto”, dueto com Manel Cruz – que não esteve presente.

Aos Cigarettes After Sex faltou uma pontinha de algo mais. Traduzindo por miúdos: faltou-lhes ser o “sex”, já que os “cigarettes” eram rodados através da melancolia ambiental que fez deles a nova coqueluche do shoegaze, quando na realidade deveriam ser a nova coqueluche para quem sofre de insónias e/ou gasta demasiado dinheiro em Valium. Ou talvez tenha sido da hora em que os puseram a tocar. Talvez ali mais para o final da noite, quando já muita gente se encontra derreada, tivessem soado melhor. Já Rodrigo Leão e Scott Matthew bem tentaram, mas não conseguiram cativar por aí além – excepção feita à versão mostrada da gloriosa “I Wanna Dance With Somebody”, de Whitney Houston.
Cativante, isso sim: Miguel, chegado ao NOS Primavera Sound já muito depois do hype que fez dele figura de proa do “novo r&b” ali para os lados de 2012, quando editou a maravilhosa “Adorn”. E foi cativante porque não foi Miguel: foi uma mistura de si próprio com Prince, James Brown, Iggy Pop; foi funk, foi rock n' roll, foi a foda que os Cigarettes não quiseram dar. Foi, acima de tudo, prova viva de que não é preciso ter ares de vedetismo para se ser uma grande estrela pop, que é onde provavelmente irá parar caso tenha uma pontinha a mais de sorte. A que não tiveram os Arab Strap, por exemplo, que apesar de geniais nos obrigaram a uma escolha difícil: ir jantar agora ou não comer sequer?

Escolha essa que foi virtude do nome que se apresentaria a seguir: Run The Jewels, regressados ao festival não enquanto um nome que despertasse a curiosidade mas enquanto grandes do hip-hop. A dupla de Killer Mike e El-P encontrou o seu Vítor Oliveira e foi subindo progressivamente de divisão, ombreando agora, na Primeira Liga, com todos os habituais candidatos a campeão. Ao Porto, trouxeram o seu terceiro álbum, temas mais “antigos” como “Close Your Eyes (And Count To Fuck)” e elogios a Jeremy Corbyn, que perderia as eleições no Reino Unido nesse mesmo dia (ou ganharia? A política tornou-se demasiado estranha). Quem não perdeu foi o público, enlouquecido pelo hip-hop. Começa a tornar-se tendência: o género está, progressivamente, a conquistar os festivais nacionais.
Se de Flying Lotus sobram apenas os elogios de muito boa gente, pasmada com o que ele soube fazer em palco, dos Justice não rezará muito a história – ainda que, pela primeira vez, tenham dado um espectáculo decente em Portugal. Faltou a cruz, mas houve “D.A.N.C.E.” e milhares de pessoas a dar à anca, que é o que essencialmente interessa num concerto do género. Outras tantas preferiram recarregar baterias, já que os dois dias subsequentes seriam mais complicados.

Dia Dois
Quem optou por vir de autocarro até ao recinto, a partir da baixa do Porto, teve uma desagradável surpresa; uma qualquer parada militar, envolvendo senhores simpáticos de camuflado e tanques que Portugal nunca utilizará numa guerra, fechou as estradas à passagem do mesmo, obrigando à passeata por entre bairros e bairros até finalmente chegar ao Castelo do Queijo, quase uma hora após a partida inicial e alguns enjôos depois. Mas isto também é rock, certo? Arriscar, sofrer e finalmente triunfar. Que poderia ser o lema dos First Breath After Coma, actualmente na mó de cima, à boleia do estatuto granjeado pela Omnichord Records; no Palco Super Bock, mostraram toda a beleza de um pós-rock que teima em não esmorecer, e contaram inclusive com a presença do amigo Noiserv num dos temas. Já os vimos em sítios mais aconchegantes e arrebitados, mas deu para aquecer.

Um aquecimento que, quando não propiciado pela cerveja que ia oscilando cara para dentro de copos reutilizáveis, era feito pelas visões-ficções emanantes de guitarras eléctricas – o som do coração a palpitar, a vida em movimento. Um movimento não-realizado pelos Royal Trux, que em vez de apostar forte e feio nesta sua reunião de forma a amealhar uns trocos, como quaisquer veteranos, mandaram à fava a perspectiva de reforma e fizeram exactamente aquilo que faziam antes de colocar um ponto e vírgula na carreira: meteram drogas no sangue e foram tocar umas canções de ruído misturado com groove. Se a fraca qualidade do som não deixou apreciar devidamente a música, pelo menos o mito foi aplaudidíssimo.
Veteranos à séria, os Teenage Fanclub foram dando um bom concerto no Palco Super Bock, já depois do jantar e da decisão sensata em não ver, de todo, os Sleaford Mods (poupem-nos, a sério). Alicerçados não só no seu último álbum de estúdio (Here, de 2016) como também em velhos clássicos do rock alternativo, exemplo de Bandwagonesque, que em 1991 foi considerado por uma revista séria como o melhor álbum desse ano, à frente do álbum-tornado-Cristo, Nevermind, os escoseses foram fazendo as delícias de alguma intelligentsia indie, de idade respeitável, e que já nos anos 80 bradava que o rock só foi bom no primeiro EP.
Claro que mesmo os Fanclub tiveram de ser colocados de parte, mais ou menos a meio do seu concerto; era muito mais importante seguir viagem rumo ao curioso Palco Ponto, ou . , de forma a que pela pele ribombasse todo o fulgor e respiração maníacos desse monstro chamado Swans, um terror saído do Livro do Apocalipse para erguer seus louvores a Deus ou algo acima Dele. À dianteira, Michael Gira, conduzindo os seus comparsas como um maestro conduz uma orquestra afinada pelo ruído, naquele que foi um dos últimos concertos dos Swans com esta equipa (houve mesmo quem tivesse ido ao NPS de propósito, sem suspeitar que eles regressarão a Portugal em Outubro...). Testemunhar os Swans, mesmo em 2017, é ver de perto a evolução que um género como o rock n' roll teve ao longo de todas estas décadas: a dança é trocada pela textura, o ritmo pelo sentimento de que algo de grandioso é possível, os riffs não exalam mestria (mesmo que exista) mas sim a crença de que é possível fazer muito com pouco. Basta uns amplificadores. Resta saber o que pensará Michael Gira dos miúdos que dançavam nas grades, ele que nos saudosos anos 80, quando não usava chapéu mas sim surgia imponente de tronco nu e pronto a partir para a violência física, disse em entrevistas que odiava até mesmo o headbanging...
Duas horas de Swans depois, seriam os Cymbals Eat Guitars a fazer pela vida no Palco Pitchfork, já depois de muitos terem abandonado o recinto (porque preferiram ir ver Bon Iver, os idiotas) e mais alguns terem ficado para nova dose de Nicolas Jaar. A banda de Staten Island não se intimidou perante tão pouca presença e deu um excelente concerto, eles que sempre foram uma banda subvalorizada dentro do indie rock de nuances mais psicadélicas, tendo apresentado ao vivo e a cores os temas de Pretty Years, o seu último álbum. Depois deles, foi o mago Richie Hawtin que subiu àquele mesmo palco para apresentar CLOSE, espectáculo audiovisual onde foi o techno a impôr as suas regras. Durante meia hora pareceu mesmo ser o melhor do festival.

Dia Três
Esfolados, cansados mas não mortos, hordas de festivaleiros voltam a invadir o Parque da Cidade para o terceiro dia de NOS Primavera Sound, mas muitos menos: neste terceiro dia não houve um Bon Iver que puxasse o público mainstream como ele o fez. Mas houve, isso sim, um concerto simpático de Núria Graham, que não foi mais que outra menina a cantar canções indie rock à guitarra mas cuja candura impedirá qualquer pessoa de dizer mal do que seja. Até porque foi ela quem cantou a melhor canção pop que se ouviu em todo o festival: “Toxic”, de Britney Spears. Os Evols, que já não são a banda a quem a Everything Is New disse obrigado mas dispensamos, deram um bom concerto logo a seguir, no palco principal, naquela que foi a apresentação do seu novo álbum e que mostra uma sonoridade mais próxima do college rock de bandas como os R.E.M., longe daquela patifaria spacey que mostraram, há muitos anos, no Milhões de Festa.


Sem desprimor para qualquer um destes nomes, seria de Elza Soares a tarde – se não mesmo o todo o festival. Existia o receio de que a brasileira não conseguisse mostrar, em espaço aberto, toda a fúria contida em A Mulher do Fim do Mundo, o álbum que gravou com um grupo de novos pensadores paulistas e que a voltou a colocar nas linhas de muita imprensa. Puro engano. Nada nesse feminismo quase radical se perdeu no éter, com Elza permanecendo sentada no seu trono, puxando pelo público como a rainha que sempre foi. À semelhança dos seus anteriores concertos, é em “Pra Fuder” que a audiência mais se entusiasma, pois os portugas adoram um bom palavrão – e se pudermos dançar ao som dele, tanto melhor. E há que destacar, devido à sua importância, também toda a teatralidade que envolve este espectáculo, com um convidado especial prostrando-se a seus pés, com o excitante bom humor de Elza, com o ar quase envergonhado com que os seus músicos acolhem os elogios da Diva. Será que alguma vez nos cansaremos de Elza Soares? A resposta é um rotundo “não”.
Curiosamente, será essa a mesma resposta caso sejamos questionados “será que alguma vez nos cansaremos dos Shellac? A banda residente do NOS Primavera Sound esteve desta feita em modo “fodam-se”, ignorando os apelos do público por uma melhoria a nível do som e recusando tocar clássicos como “The End Of Radio” ou “Prayer To God”. Ainda assim, houve um Boeing 767 Albini a planar pelo palco em “Wingwalker” e o moshpit indispensável em “Steady As She Goes”, antes da banda abandonar e dar lugar a um dos nomes mais esperados desta edição: o dos Death Grips. Descrever o que se passou durante este concerto como mosh seria pouco – aquilo foi uma verdadeira sessão de pancadaria, tanta quanta aquela que era dada pelos três membros posicionados em cima do palco. O hip-hop nunca foi tão duro como nas palavras de MC Ride ou na bateria do colossal Zach Hill. Se é este género o novo rock, os Death Grips serão então a sua vertente metaleira: inflexíveis, agressivos, outsiders num mundo que parece não querer compreendê-los. O alinhamento, esse, poderia ter sido melhor; uma “Hacker” teria soado que nem ginjas. Mas, oh, se valeu a pena.

Em Japandroids, duas rapariguinhas sentadas nas grades metem conversa: têm 13 e 15 anos, respectivamente, e para além dos canadianos também dizem adorar trambolhos emo como os Panic! At The Disco e odiar “Despacitos” e Justins Bieber. Seria melhor se fosse ao contrário, mas este relato pretende apenas salientar uma coisa: é sempre bom que haja juventude a gostar de música e de rock n' roll e que faça questão de fazer de cada concerto uma experiência inesquecível. Melhor ainda: em breve, fizeram-se acompanhar pelos pais, também eles fãs dos Japandroids. Mas, e perguntamos: é possível não se ser fã da dupla que ajudou a revitalizar o rock de raízes, que misturou o punk com Bruce Springsteen e fez tres álbuns que mais soam a clássicos instantâneos? Se sim, apresentem-nos essa pessoa – há que lhe enfiar um coração pela goela dentro, as soon as possible. Numa hora frenética, ouviram-se temas como “Wet Hair” ou “North East South West”, terminando o concerto com o sorriso aberto, velocidade máxima e braços erguidos ao céu de “The House That Heaven Built”, naturalmente acompanhada pelos coros do público. No final, houve quem admitisse mesmo que nunca tinha suado tanto na vida. Glória eterna aos Japandroids, pois claro.
O festival encerraria com uma actuação de Aphex Twin, que fez dançar de forma abstracta ou foi criando temas abstractos para serem dançados, dependendo das preferências de cada um; mais que a música, que muitos choraram não ser os temas mais ambient, foram as luzes e os visuais – Cavaco, Salvador Sobral, Pastorinhos e Sara Dias da Wav. - que foram fazendo as delícias dos resistentes. Alguns ainda teriam vagar para Tycho, logo a seguir, e para Against Me!, antes disso (no caso destes últimos, as duas rapariguinhas de Japandroids, que ao que parece seguiram contentes com uma baqueta nova para casa). Mas a maioria optou por seguir para casa cedo com um único pensamento na cabeça: para o ano há mais. Há sempre mais.
