Não há nada que se compare à chegada a casa numa sexta-feira depois de uma semana de trabalho e, pouco depois, arrancar para um bom serão de música ao vivo. Melhor do que isso, só mesmo um serão de música ao vivo no Barreiro e com calorosa companhia. Assim foi o início chuvoso da programação do JUNHO CRAZY da barreirense OUT.RA, com a primeira das datas a ficar encarregue ao trio brasileiro DEAFKIDS e às lisboetas Clementine na inconfundível ADAO (Associação de Desenvolvimento Artes e Ofícios) – espaço já tão reconhecido como um dos mais prolíficos em termos de oferta de concertos, workshops, exposições, etc. na Margem Sul, sendo também o epicentro do festival local OUT.FEST. Um sítio que, ainda vazio, já emana uma beleza comunitária extraordinária, e que se torna ainda mais charmoso de sala cheia. Convívio não faltou, e a música não desiludiu com a subida ao palco do trio de Lisboa, Clementine.
Estas promulgam uma parede de som que navega as entrelinhas do garage rock e indie, mas com uma pitada de atitude vulnerável e frontal derivada do punk. Energéticas e com claros sintomas de vontade de partir a casa toda, não faltaram riffs – quer a combinar baixo com guitarra e até mesmo com dois baixos – nem batidas que pusessem o público a lançar os primeiros passos de dança e a ameaçar a temperatura certa para uma noite de calor óhmico. Com um alinhamento que pouco terá passado da meia hora, não houve momentos de baixo fulgor que fizessem qualquer ouvinte desinteressar-se da proposta das lisboetas. Mesmo tratando-se de um género de música já tão cansado e suscetível à saturação, viu-se pelo público a contornar o palco que não foi esse o caso com o trio.
Com o retorno do outro trio da noite, os brasileiros DEAFKIDS, assinalou-se a primeira noite da sua segunda digressão europeia consecutiva, escassos dias após o término da primeira, com os finlandeses Oranssi Pazuzu. A segunda, relembre-se, estender-se-á até aos últimos dias de julho, com a odisseia a recomeçar aqui, na ADAO no Barreiro. Quem ainda não conseguiu riscar este nome da sua lista de concertos, não saberá certamente o que é suster a impressão física que os brasileiros impõem no seu público ao vivo. Com sucessivas transformações que adotam o peso do crust e d-beat, com o psicadélico dos efeitos e distorções, bem como com a dançabilidade das percussões eletrónicas e acústicas, a metamorfose nunca cessa. O concerto começa com um planalto de subtons de drone e amplificação. A distorção ressoa pelas paredes e as batidas dos tambores vão lentamente surgindo à superfície da maré. Tântrico e sufocante, rapidamente o público se deixa consumir pelo corpo do som e o seu efeito patológico.
Pouco depois, ouvem-se as primeiras guitarras de peso, com intervenções que lembram Motörhead ou Amebix, rajadas que mais parecem dissecadas por uma trip suburbana assolada na distopia. O comentário sociopolítico dos brasileiros é uma componente forte da sua música. Mesmo não sendo óbvio para quem não os conhece mais a fundo ou ainda não tenha lido esta entrevista no SWR Barroselas, mais do que as palavras ecoadas no reverb do microfone, são as batidas industriais de intervenção, carregadas em reatividade popular, e os samples de música brasileira política, que entrelaçam a metade do concerto com o seu término, que relembram o público que este tipo de música implica não só ouvir, como sentir o que está a ser declamado. E é muito difícil sair de um concerto de DEAFKIDS sem reação ou indiferente.