Entrar no Salão Nobre do Ateneu Comercial do Porto é por si só exercício de contemplação, e na passada quinta feira, dia 9 de maio, algo mais veio contribuir para a mística do local. A sala transpira deslumbramento e solenidade (excetuando as duas bolas de espelhos suspensas que lá foram colocadas - a elas voltaremos mais tarde), e as cortinas de veludo iluminadas a meia luz no palco, serviam de cenário perfeito para uma harpa simetricamente colocada no meio de tudo isto.
O ambiente estava já criado, ficava a responsabilidade de mantê-lo, ou pelo menos de não estragá-lo até a chegada de Filho da Mãe, a razão pela qual a lotação se encontrava praticamente esgotada. O peso recaiu então em Angélica Salvi, a harpista que se tem destacado na arte da improvisação, e do experimentalismo, e em transportar a sonoridade do instrumento para um mundo mais contemporâneo. Debruçou-se sobre três músicas, cada uma delas a servir de catapulta à anterior. Se a primeira não conquistou e apenas parecia que estava a tocar meras notas porque podia, é na segunda que a cadência nos cai em cima e nos deixa totalmente fascinados. À terceira, e última, estamos simplesmente arrebatados. A destreza e delicadeza no dedilhar de Angélica permanece do princípio ao fim, mas de música para música o delay entre as notas ia tornando-se mais espaçado e prolongado, o que criava uma realidade sonora totalmente soberba. É então que percebemos que Salvi não é só uma mestre da harpa, mas também do pedal, e é com ele que consegue manipular sons até estes se tornarem algo com vida própria. Ao terminar fica-nos a saber a pouco, mas algumas horas depois saberíamos que tinha sido a introdução perfeita para Filho da Mãe.
Angélica Salvi lucrou bastante com o efeito surpresa, mas Rui Carvalho tinha do seu lado o aperfeiçoamento dos anos. Por cá já conhecemos bem o seu trabalho desde os inícios dos anos 2000, altura em que integrava os saudosos If Lucy Fell. Se já aí se conseguia sentir a força da sua guitarra, é com o seu projeto Filho da Mãe que consegue provar toda a sua mestria. Se até aqui ninguém colocava em causa a destreza de Rui Carvalho nas cordas, após Água-Má ninguém pode duvidar dele como um dos mais competentes músicos portugueses, sendo que este concerto fora também prova disso. O espetáculo era de apresentação deste seu novo trabalho, e como tal, fez todo o sentido que o alinhamento escolhido se debruçasse praticamente na exclusividade sobre ele. Mais sentido faz ainda quando estamos a falar de um trabalho tão coeso e tão único como este que nos é apresentado em 2018. O método já nos é conhecido: uma brincadeira entre a guitarra clássica e loops em cima de loops, com uma pitada de delay à mistura. Se em estúdio resulta bem, ao vivo as capacidades de Filho da Mãe fazem-no acontecer igualmente apetecível. As músicas não contam uma história, aliás não contam nada, apenas se complementam de uma para a outra, e no seu conjunto, para criar uma atmosfera submersa num rio. E sejamos sinceros, criar uma realidade praticamente palpável é muito mais poderoso que descrever algo.
Há uma coerência de acorde durante todo o concerto, e é a partir desse acorde que a movimentação da água acontece. Por vezes têmo-la translúcida e calma como foi o caso de “Não Me Voltes Atrás”, outras vezes têmo-la em toda a sua fúria e turbulência como aconteceu em “Camelos nas Levadas”. No entanto, encontramo-nos em águas profundas, quase sempre mortíferas. A água move-se, flui e agita-se e a sala permanece estática, deixando no imaginário de cada um o rio gélido que se percorre. É então que dois focos de luz branca disparam contra as bolas de espelho encadeando toda a sala com pequenos fragmentos de luz em perpétuo movimento. Na primeira impressão soa a percalço, a um erro cometido de forma involuntária, tal fora o choque entre a escuridão que se absorvia com a música, e a inesperada iluminação. No entanto, de segundo para segundo percebemos, e - mais importante que isso - sentimos a razão de tal acontecimento. O efeito visual criado ajuda-nos a criar a imagem de submersão e deixa-mo-nos aos poucos afogar na intensidade apaixonante de tão maravilhoso concerto. De repente voltamos para a escuridão (será que sobrevivemos?) e o concerto termina.
Rui Carvalho desce do palco, mas logo volta a subir para não nos deixar impacientes, acabarmos logo com tudo e irmos para casa dormir, como brincou. Para o encore ficou uma música que nasceu com Água-Má, mas que nele não teve lugar. Tudo termina e há uma bem merecida ovação. Para quem lá esteve, perdurou uma sensação de alma cheia perante uma experiência tão fluída e uma destreza musical tão grande. Já cá fora aprecia-se o silêncio antes de conseguirmos recuperar os sentidos e comentar ao que havíamos sobrevivido. Uns minutos mais tarde voltamos a respirar.