Tudo aqui parece ter sido pensado ao pormenor, incluindo o inteligente jogo de luzes que cobria parcialmente o rosto da artista e lhe conferia uma penetrante aura fantasmagórica, qual ser misterioso a espalhar sons e palavras de um encanto arrebatador. Folk negra mas comovente, de mãos dadas ao post-rock nos momentos em que euforicamente se lançava numa esplendorosa exploração instrumental, e que nunca deixou de soar poderosa, triunfal, e absolutamente transcendente. Sentiu-se, chorou-se - literalmente, tal era a força descomunal das emoções cruas que atravessavam o corpo e arrepiavam a alma - e, no final, a sensação era de renascimento espiritual, como se a solidão delicada que parece emanar das suas músicas tivesse aqui alcançado a luz aconchegante de uma intimidade coletiva. Em palco, temas como “Belong” ou “Melt” ganharam nova vida quando interpretados no conforto quente de uma plateia que os abraçou com todo o coração, e foi precisamente esse ambiente idílico, aliado à qualidade elevadíssima das composições, que fez desta uma das melhores e mais inesquecíveis estreias na história da Amplificasom. Quem lá esteve, certamente que manterá viva a chama da memória.
Depois de um pequeno intervalo - essencial para assimilar a montanha russa de emoções causada pela atuação anterior -, subiram ao palco os Mono, presença regular no nosso país mas que já há seis anos que não pisavam um palco português, numa ausência tornada mais longa com os atrasos provocados pela pandemia. E se a “novidade” poderá já não ter o peso de outrora, persiste uma familiaridade extremamente reconfortante e que mais emoção arranca depois destes últimos dois anos de confinamentos e restrições, em que tantas vezes se permanecia em casa a sonhar com o regresso de uma normalidade que, talvez de forma insensata, se tomou por garantida. Mal o concerto se iniciou, ao som da impetuosa “Riptide” (uma das mais vigorosas e simultaneamente emotivas peças do recente Pilgrimage of the Soul), ficou claro que os Mono ainda têm muito para oferecer e que a luz da sua entrega genuína mantém-se bem acesa. A aposta no referido álbum de 2021 avançou com “Imperfect Things”, que é honestamente uma das mais bonitas canções que o quarteto de Tóquio alguma vez compôs - excecionalmente luminosa, as suas doces melodias a respirarem uma nostalgia inebriante, os riffs de guitarra atmosféricos e “rasgados” a decorarem o tema com exuberantes cores de esperançosa fantasia - e que resulta muitíssimo bem ao vivo.
A partir daí, o alinhamento alternou entre a aposta no presente recente e a celebração do passado, sendo que um dos momentos mais arrepiantes terá sido a “falsa” despedida com o clássico “Ashes in the Snow”, retirada dessa pérola que é o seminal Hymn to the Immortal Wind (sem dúvida alguma, uma das mais grandiosas obras de post-rock alguma vez lançadas), e que imediatamente despertou uma reação efusiva por parte da audiência… E como não, quando se trata de uma monumental escultura de emoções sonoras, em que a cólera da distorção “nervosa” casa tão bem com as melodias harmoniosas de sensibilidade neoclássica? Uma interpretação profundamente magistral, mas que não representou o fim da viagem, apenas uma breve pausa. Faltava ainda o encore, que contou logo com o retorno de A.A.Williams para com os Mono a tocar a esplêndida “Exit in Darkness” - soberba colaboração que permitiu, pela primeira e única vez neste concerto, a presença decisiva da voz a contracenar com uma banda predominantemente instrumental. Para o encerramento definitivo, ficou guardado um final apoteótico através de “Com(?)”, recordação velhinha de 2002 e que contou com uma passagem de tal forma avassaladora que criou uma colossal parede de som, deliciosa e ruidosa, onde o post-rock se tornou tão abrasivo, tão violento, que quase invadiu o território do noise - um ataque instrumental selvagem que deixou todos boquiabertos, arrepiados pela intensidade implacável e irreverente com que o grupo proferiu o derradeiro adeus.

Imagem gentilmente cedida por Daniel Sampaio, Amplificasom.