Por muito que já se tenha insistido neste tema, é impossível não continuar a afirmá-lo: o NOS Primavera Sound, este ano, esteve diferente e é altamente questionável se essa mudança foi positiva. Sim, continuou a haver vários pontos de interesse que justificaram a ida ao Parque da Cidade (claramente um dos mais paradisíacos recintos para festivais em Portugal, só comparável, muito provavelmente, ao de Paredes de Coura), mas a polémica confirmação do colombiano J Balvin, assim como o menor número de bilhetes vendidos (sobretudo para o primeiro dia) ilustravam um inegável clima de descontentamento, ou pelo menos uma incapacidade de adaptação por parte de uma boa fatia da audiência a esta nova realidade. O público que aqui marcou presença dividia-se, portanto, entre novos visitantes e fiéis resistentes que desejavam ver alguns dos artistas que melhor se enquadravam no espírito original do Primavera, sendo que o futuro dirá se a opção por um cartaz mais arriscado compensará ou se os próximos alinhamentos se revelarão mais seguros de modo a apaziguar os que se sentiram traídos. Sem dúvida tempos interessantes, ainda que um pouco incertos, para o evento portuense.
No entanto, mesmo com tudo isto, ainda houve muito para ver, ouvir e sentir na oitava edição do Primavera Sound (versão portuguesa, claro está), como por exemplo a passagem dos Built to Spill, numa atuação que serviu para recordar o majestoso Keep It Like a Secret, mas que também incluiu outras peças do catálogo da banda norte-americana. Houve algo de muito especial neste concerto, um encanto difícil de explicar por palavras, pelo menos com o mesmo nível de emoção desenfreada que aqui se instalou e que só quem testemunhou poderá compreender na totalidade.
Pode-se dizer, todavia, que durante o tempo em que o grupo interpretou os temas da sua magnífica obra de 1999, era nesse ano que todos os que aqui estavam se encontravam, ainda que o calendário continuasse a marcar 2019. Viagem ao passado absolutamente maravilhosa, feita com um charme notável e sem nunca soar forçada - muito pelo contrário, revestiu-se de uma magia bem mais genuína que outras iniciativas revivalistas do género. Olhava-se para muitos dos presentes, sobretudo os que fizeram questão de dar tudo nas filas da frente, e as expressões de felicidade diziam tudo. Guitarras cobertas por uma distorção tão intensa quanto doce, um registo vocal sereno mas simultaneamente apaixonado, o feeling deliciosamente alternativo das músicas ou a postura descontraída e cool dos elementos, tudo isso faz com que seja fácil perder-se neste admirável mundo não assim tão novo, mas altamente relevante.
Poderia estar aqui o concerto do dia, mas igualmente deslumbrante (e a fazer concorrência aos Built to Spill) esteve o britânico Jarvis Cocker, o lendário frontman dos Pulp, que veio apresentar “Introducing JARV IS...”. Mais do que um simples músico, Jarvis é um verdadeiro mestre de cerimónias: menciona a visita ao nosso país com os seus Pulp (2011, Paredes de Coura) e interage com o público - entre outras coisas, pergunta a algumas pessoas o que as aflige e até oferece doces. Um concerto? Mais do que isso, um verdadeiro espetáculo - é essa a palavra que mais fielmente descreve o que aqui foi oferecido. Um espetáculo cheio de charme, de sedução, de originalidade; enfim, Jarvis não é um indivíduo comum, por muito que em tempos tenha cantado “Common People”. Contudo, é interessante como parece não se ver como uma estrela intocável, a julgar pelo modo honesto como valoriza a sua audiência; se calhar, por muito que seja endeusado - e este artigo não é exceção - não se vê como aquilo que o público faz dele: um ícone de uma geração, uma das mais carismáticas figuras do movimento britpop dos anos 90, uma lenda da música alternativa. Muito possivelmente, vê-se somente como um tipo que interpreta com o máximo de honestidade (e uma saudável dose de teatralidade sublime) canções que conquistam corações. Nesta noite, aproveitou para recordar o legado dos Pulp através de “His 'n' Hers” (e choveu somente aqui; será que São Pedro não é fã da antiga banda de Jarvis, ou só quis abençoar este momento solene?), mas, acima de tudo, concentrou o alinhamento em canções mais recentes, canções ora dançáveis, ora introspetivas e envolventes, que vão do rock à soul e que passam igualmente pela pop ou mesmo o disco, passeando pelos géneros como um turista por uma cidade desconhecida; resumindo, um serão esplêndido.
Dia 1 - Parte 1
Uma das características desta edição do Primavera foi a forte presença de artistas femininas - bastava olhar para a atração principal deste dia, a norte-americana Solange - e um dos destaques da noite vai precisamente para a atuação de duas senhoras extremamente talentosas - as jovens Let's Eat Grandma. Formadas pelas amigas de infância Rosa Walton e Jenny Hollingworth, produzem uma pop experimental, colorida e futurista - por outras palavras, assinam alguma da mais criativa e excitante música dos dias de hoje e apresentam-se como uma banda que pertence indiscutivelmente a esta geração, tanto a nível musical como sociológico (grupo de mulheres numa altura onde o feminismo atravessa um período áureo). Com o aclamado I'm All Ears na bagagem, a dupla encantou quem as viu com uma irresistível mistura de inocência adorável, humor, energia, jovialidade (dançavam, corriam, deitavam-se no palco) e, claro, pura qualidade musical. Muitos elogios podem, e devem, ser tecidos às Let's Eat Grandma, pois elas são fantásticas e ainda mais o serão se assim continuarem.
Solange foi, como já se referiu, a outra grande atração feminina, protagonizando uma atuação poderosa e musicalmente rica que, acima de tudo, provou que já não é ofuscada pela luz da irmã Beyoncé e que está longe de ser aquele produto de pop massificada que muitos ainda fazem dela - mas talvez essa fama, mais mito do que outra coisa, explique, para além da chuva, a audiência mais reduzida neste dia. É pena...
No campo do hip-hop, estilo muitíssimo bem representado nesta edição, Danny Brown provou ser um rapper carismático, intenso no modo como debita as suas rimas e dotado de um timbre bem próprio e inconfundível, mas foi o estónio Tommy Cash que mais surpreendeu, tanto musicalmente como no departamento visual (o seu espetáculo inclui imagens de mulheres nuas a segurar peixes, por exemplo). Cultiva deliberadamente a estranheza, abraça um surrealismo quase absurdo, é weird de forma inexplicavelmente fascinante, é rapper mas decora a sua música com elementos de eletrónica… conceptualmente desafiante e provocador, Tommy Cash, ao ser ele próprio, não deixa ninguém indiferente - reside aí o segredo da sua grandeza.
Num dia que também incluiu uma muito satisfatória apresentação dos canadianos Men I Trust, que ofereceram um relaxante banho de dream pop ao final da tarde, o balanço é inegavelmente positivo.
Dia 1 - Parte 2