Depois de uma pausa de dois anos imposta por uma pandemia inesperada e que tomou o mundo inteiro de assalto, eis o retorno - agora sem timidez nem restrições praticamente nenhumas - dos festivais de verão como os conhecíamos antes de tudo mudar. No entanto, e apesar de muito se usar a palavra “regresso” para definir este acontecimento que há dois anos parecia uma utopia inconcretizável ( sonhava-se com isso, claro, mas a incerteza pairava no ar como uma nuvem negra ameaçadora), talvez fosse preferível olhar para este fenómeno como um renascimento. Porque ao entrar no recinto logo pelas 16h de quinta-feira, a atmosfera que ali se respirava era um misto de entusiasmo e gratidão, refletida numa vontade de viver tudo ao máximo para compensar o tempo perdido, no desejo de recuperar a liberdade que tinha sido inevitavelmente retirada.E, como não podia deixar de ser, a celebração foi libertadora, inspiradora e, acima de tudo, catártica.
Na verdade, não havia melhor começo possível - literalmente, pois foi este o concerto de abertura do festival - que aquele proporcionado pelos Derby Motoreta's Burrito Kachimba. Um nome sui generis, sem dúvida, dir-se-ia até cómico, mas uma coisa é certa: a sonoridade destes espanhóis , que antes já tinham passado por Coura, não é brincadeira nenhuma. Apoiados num rock retro que soa bem mais revigorante e enérgico do que datado e insosso, trouxeram ao Palco Cupra um delicioso aroma 70s - espécie de cruzamento inspirado entre uns Hawkwind e o espírito mágico de jam session dos Led Zeppelin - ao qual acrescentam um toque subtil de world music para assim espalhar um psicadelismo exótico e exuberante. Não se pode dizer que inovem propriamente, mas ofereceram uma dose de rock de tal forma gloriosa e excitante que qualquer vontade de trocar de palco rapidamente se evaporou. O mais fascinante foi mesmo isso: se inicialmente o desejo era simplesmente dar uma espreitadela, rapidamente se alterou para uma vontade inabalável de ficar até ao fim. Garra , paixão, boa comunicação e boas malhas - mais não foi preciso.
Já no Palco NOS, Pedro Mafama - uma das figuras de maior destaque entre aquelas que pegam na tradição solene do fado para o reinventar e modernizar - desfilou os temas que compõem o muito interessante álbum de estreia “ Por Este Rio Abaixo” e interpretou-os num concerto bonito, honesto e “ transparente”, mas que nunca passou para o “nível seguinte”, talvez por se notar uma certa ausência de uma maior intimidade emocional. Essa, aliás, só realmente foi sentida em determinadas zonas da plateia, junto do grupo de seguidores fiéis que lhe transmitiam calor e carinho enquanto esperavam receber o mesmo de Mafama.
Parte 1
Parte 2
Algo semelhante aconteceu pouco tempo depois no Binance, durante o concerto de Spellling (sim, o L é escrito três vezes). Substituição de última hora devido ao cancelamento de Georgia, o projecto de Chrystia Cabral protagonizou um concerto bem sólido à base de uma pop doce, de sabor clássico mas altamente ambiciosa , que serviu para relaxar a alma mas que precisava da intimidade( lá está outra vez essa maldita palavra) de uma sala para recriar todo aquele encanto dos álbuns de estúdio. Foi giro, soube bem, mas não chegou exatamente a deslumbrar. Noutro ambiente isso teria facilmente acontecido, pelo que resta somente esperar.
Quem esteve bem melhor - extraordinária, na verdade - foi Kim Gordon, essa autêntica rainha do rock que aqui se apresentou a solo, acompanhada por três mulheres que a ela se juntaram para exibir uma feminilidade feroz, sedutora e orgulhosamente indomável. Com uma postura magistral, tão enigmática quanto irreverente, a ex- Sonic Youth ergueu um manto sonoro surrealmente envolvente, ali entre o experimentalismo dissonante e ritmos pulsantes que piscam o olho ao universo do hip hop, sobretudo ao do trap. O resultado foi uma prestação de inegável força e elegância, desafiante e ousada, uma soberba escultura de distorção transcendente construída por uma mulher que, aos 69 anos, continua a encontrar novas formas de se reinventar . Por entre os temas do incrível “ No Home Record” , já de 2019, uma cover dos DNA e ainda a recente “Grass Jeans”, Kim Gordon mostrou-se ora misteriosa, ora reivindicativa, mas sempre carismática e magnificamente singular. Aquele final apoteótico, guitarra a ser freneticamente manipulada e rodada pelo palco, ainda mais ruído a ser implacavelmente arrancado como um exorcismo divinal, provou - dúvidas restassem - que Gordon é absolutamente uma deusa a viver entre humanos. E que muitos homens não lhe chegam aos calcanhares.
Parte 3
Depois, por volta das 21:20, chegou a hora de Nick Cave. Ele , que há quatro anos, neste mesmo palco e local, tinha protagonizado um concerto estrondoso, arrepiante , solene e irrepetível. Um momento único que, por isso mesmo, não voltou a ser recriado, mas não tinha necessariamente de o ser. Foi diferente, mas conseguiu ser na mesma apaixonante, revigorante e inesquecível. Até porque Cave, como bem se sabe, é um grandioso performer(um dos melhores dentro do rock, verdade seja dita) dotado de um carisma inigualável, e isso foi mais do que evidente ao longo de toda a atuação. Uma atuação que, de resto, voltou a ser um emotivo momento de catarse coletiva. Alternou entre um registo mais intenso e endiabrado( como em “ From Her to Eternity”, por exemplo) e um tom mais ameno e contemplativo, embora sempre emocionalmente poderoso, como se verificou em “O Children” (e aqui, nesta canção dedicada a “ todas as crianças” não há como não pensar nas mortes dos filhos de Cave, a mais recente ocorrida somente há um mês). Pelo meio torna-se notória a importância que Warren Ellis assume não só para a banda, como para Cave. Uma relação criativa, sim, mas também profundamente pessoal; Warren não é apenas companheiro musical, é também amigo e confidente, e os laços entre os dois cada vez mais parecem inquebráveis, o seu papel crucial a ser bem ilustrado na interpretação de temas como “White Elephant” ou a lindíssima “Carnage”. Pelo meio Cave ia repetindo “just breathe” várias vezes, de diversas maneiras, e o público com ele “respirou” bem fundo e deixou-se contagiar pela magia poética, quase palpável e indescritivelmente bela, de uma prestação excecional. Despediu-se, já depois de tocar a sempre fantástica “ Into My Arms”, com “ Vortex” e “ Ghosteen Speaks''.
Também da Austrália veio outra das grandes atrações do dia - os Tame Impala. A banda de Kevin Parker é hoje uma das maiores do mundo dentro do seu género ( e não só, na verdade), sendo que essa grandeza acabou por ser refletida, de certa forma, no espetáculo de luzes do grupo - colorido, suntuoso e super dinâmico. Essa foi, aliás, uma das grandes fontes de fascínio deste concerto, pois musicalmente permanece a sensação de que uma boa parte do público ainda prefere os temas dos dois primeiros álbuns, os aclamados “ Innerspeaker” e "Lonerism". Seja como for, entre a ambição admirável da componente visual ( realmente majestosa, não há como negar) e a sensação sempre agradável de escutar clássicos modernos como “ Feels Like We Only Go Backwards” ou “ Runway, Houses, City, Clouds”, assistiu-se a um concerto muitíssimo competente e claramente bem dado.