E o que dizer do espanto que foi aquele concerto - ou melhor, aquela festarola doida e alucinante - oferecida pela dupla fabulosa conhecida como 100 Gecs? Do início ao fim isto foi surrealmente divertido, uma dose colossal de hyperpop aliciante, esquizofrénico e musicalmente “dadaísta”. Até na imagem que ostentam o fascínio pelo absurdo vem à baila, com Dylan Brady a aparecer em palco com um engraçadíssimo chapéu- cone amarelo; todavia, tudo parece ser feito com o objetivo de desencadear um sentimento de liberdade inspirador, encorajar a ser diferente porque, caramba, qual é o mal? Talvez a alma queer da dupla - um dos pontos mais fascinantes dos 100 Gecs, e que em pleno “ Pride Month” ainda mais pertinente se torna - influencie essa despreocupação e desinteresse por estéticas convencionais, mas a atmosfera de segurança e harmonia que espalharam foi espantosamente gratificante, contribuindo para tornar um simples concerto numa celebração estupenda.
O resto, claro, ficou entregue à intensidade daquele cocktail sonoro marado, mistura mirabolante inspirada pela excentricidade da Internet, como uma colagem aleatória despoletada por um algoritmo sem filtro. E por muito que isto possa enfurecer as sensibilidades de puristas obsoletos, os 100 Gecs , não restem dúvidas, são punk até ao osso: na postura ousada e desafiante que exibem sem qualquer timidez( ser brutalmente honesto e transparente sem querer saber de nada , haverá atitude mais punk do que esta?) e no modo como, numa toada mais eletrónica que respira ares contemporâneos, conseguem recriar o sentimento de grupos como os Blink- 182 ou Paramore: a energia contagiante e jovial, a garra deliciosamente orelhuda, tudo está presente com a mesma genialidade e amor, apenas com olhos bem postos no futuro.O resultado foi um concerto fulgurante, vital, inacreditavelmente enérgico, que pôs a malta toda a dançar como se esta fosse a derradeira noite para saborear a vida.
As duas grandes atrações, como já tinha sido referido no início do texto, foram o regresso de Beck e a aguardada estreia dos Pavement. O primeiro acabou por dividir a opinião pública, mas logo aos primeiros minutos da atuação escutou-se a seminal “Devils Haircut” e a vontade foi mesmo dar tudo, não fosse esta uma malha imortal dos anos 90 que ainda hoje “bate” imenso, nem vale a pena resistir. E de 1996 passou-se logo para 2015 com “ Dreams”, naquele que foi um alinhamento em modo “best of ”( com uma ou outra cover atirada pelo meio, incluindo a de “Everybody's Got to Learn Sometime” dos britânicos The Korgis) , interpretado praticamente sem pausas, por vezes a um ritmo intenso e frenético ( possivelmente para tentar equilibrar a discografia vasta com os cerca de 60 minutos de antena que lhe foram atribuídos) por Beck e os dois elementos que o acompanhavam em palco. Foi notório o desejo de enfatizar a sua fase mais dançável ( “ Up All Night”, por exemplo, revelou-se um dos momentos mais festivos e “saborosos” destes 60 minutos), mas houve na mesma espaço para a faceta mais acústica e introspetiva através de “Morning” e “ Lost Cause”, não se falasse aqui de um homem para quem a música sempre se traduziu numa espontânea, colorida e imprevisível “colagem” de sons sem barreiras de género. Extremamente comunicativo, terminou em grande com a mítica "Loser'', ainda tão revigorante como quando veio ao mundo naquele clássico que é “Mellow Gold”, e depois com “Where It's At”, do igualmente lendário “Odelay”. Pode não ter sido consensual, mas foi muito bom (re)ver Beck, sinceramente. Ainda está em forma, ainda se recomenda vivamente e, curiosamente, ainda voltaria a aparecer neste mesmo fim de semana…
Quanto aos Pavement, havia muita curiosidade para ver em que estado se apresentariam: por outras palavras, se isto seria uma prestação penosa, sem alma, puramente motivada por fins mercantis típicos de “reunion tours”, ou se a coisa até correria bem. Felizmente que foi a segunda das opções a triunfar, pois o concerto acabou por se revelar uma boa surpresa. Na verdade, só o facto de se ter realizado constituiu um autêntico acontecimento, concretização solene de um “sonho molhado” para muitos que com eles cresceram e construíram a banda sonora das suas vidas. Foi perfeito? Do ponto de vista da execução não, mas os Pavement nunca foram essa banda , pelo que a imperfeição aqui acaba, paradoxalmente, por ser perfeita ou, pelo menos, acarinhada.
E, honestamente, há algo de inacreditável e utópico nesta reunião do grupo californiano(independentemente de o dinheiro ser ou não um fator determinante), que é o modo como os Pavement pareciam realmente estar a divertir-se, a saborear o tempo em palco, quando antigamente nem juntos na mesma sala conseguiam estar. Agora, pelo contrário, mostram-se mais pacíficos e colaborativos; por exemplo, não foi apenas Stephen Malkmus a ser o centro das atenções, o percussionista Bob Nastanovich também teve os seus momentos para brilhar e toda a banda parecia estar a trabalhar em equipa. Os fãs agradecem a reconciliação, pois assim recebem o presente de poder escutar malhas de um passado delicioso e jovial, um passado que sempre pareceu romantizar o encanto despreocupado da cultura “slacker”. Fala-se aqui de malhas como a incrível “Trigger Cut”( retirada dessa preciosidade do indie que é o lendário “Slanted and Enchanted), “Serpentine Pad”, “ Cut Your Hair” ou a gloriosa “Shady Lane”. Pode não ter sido muito mais do que uma sessão de nostalgia, mas nada mais necessitava de ser.
Num dia em que a adesão ao festival foi relativamente menor, os Pavement fizeram com que muitos tivessem abandonado o recinto de coração cheio.