Chegados ao terceiro dia do NOS Primavera Sound, havia ainda muito para ver, incluindo o impressionante espetáculo dos Gorillaz, mas a verdade é que logo pelas 17h teve lugar um dos mais brilhantes concertos de todo o festival, quando subiram ao palco os britânicos Dry Cleaning, pérola saída do Reino Unido pós-Brexit.
Autores de um dos mais estimulantes discos que 2021 viu nascer - o grandioso “New Long Leg” - encantaram logo aos primeiros segundos através daquele irresistível contraste entre um instrumental vigoroso e um spoken word inebriante. Florence Shaw é uma figura tão enigmática quanto inesquecível, os seus versos proferidos de forma lacónica mas firme, ali entre a serenidade hipnótica e a sensualidade misteriosa, coexistindo de forma magistral com os riffs ruidosos e “nervosos” de Tom Dowse, o baixo opulento de Lewis Maynard e a bateria possante de Nick Buxton. Uma sonoridade que tem tanto de sedutora como de impetuosa, inscrita na escola do post-punk mas com claras referências à dissonância irreverente de uns Sonic Youth. Aliás, Kim Gordon esteve cá dois dias antes e o registo de Florence, muitas vezes, parece ser consequência direta do legado dessa rainha em hinos incontornáveis como “Kool Thing”.
Sem dúvida alguma, assistiu-se aqui a um futuro momento icónico por parte de uma banda no auge da sua força e encanto, a debitar algum do mais revigorante rock da atualidade. Um concerto histórico que daqui a uns anos será recordado com nostalgia, mas que aqui se fez ouvir enquanto símbolo máximo de relevância viral.
Num dia fortemente marcado pelas “bandas de guitarras”, essa tendência continuou com a atuação dos Pile, grupo que começou por ser o projeto a solo de Rick Maguire e que eventualmente se tornou no coletivo que é hoje. E que coletivo, diga-se, porque este concerto foi, pura e simplesmente, uma descarga implacável de rock esmagador, uma ode ao poder transformador do riff imortal. Reunindo o melhor de dois mundos distintos mas não assim tão distantes - a garra latente do post-hardcore e a sensibilidade melódica de um indie apaixonado- proporcionaram aos fiéis que se deslocaram ao Palco Binance uma dose suada de malhas enérgicas e robustas em que as guitarras assumiam sempre o papel principal. Sob um sol tórrido num dia bem soalheiro, abanou-se a cabeça e sentiu-se o ataque daquelas guitarras num dos mais inspiradores concertos do Primavera. Parabéns, Pile!!
Acaba por ser engraçado pensar que uma das bandas que muito caminho desbravou para os Pile atuou sensivelmente uma hora depois do fim da atuação dos primeiros: fala-se aqui dos Dinosaur Jr., veteranos do rock e até do Primavera Sound. E se é verdade que já os vimos com mais garra e motivação, especialmente J Mascis (o facto de terem perdido os instrumentos no aeroporto e terem tido um som insuficiente em palco não deve ter ajudado nada), também é certo que continuam a ser uma verdadeira instituição: Mascis provou que é realmente um guitarrista exímio, tanto nos solos como na arte de arrancar imponentes camadas de distorção de uma guitarra( mesmo quando não se trata da sua), ao passo que Lou Barlow ainda toca o seu baixo de forma eufórica, e Murph continua a ser um baterista extremamente sólido e coeso, daqueles capazes de fazer muito com pouco. Deram um concerto perfeito? Não, claro que não. Mas fizeram o que puderam e cativaram pela demonstração de resistência e perseverança, pelo modo como olharam a adversidade nos olhos e se recusaram a desistir. No final, ainda conseguiram destilar malhas “apunkalhadas” e banhadas em pura distorção.
Parte 1 - Slowdive e Dinosaur Jr.
Parte 2 - David Bruno e Helado Negro
Bem bonito foi também Jawbox. Desconhecidos de muitos dos presentes , o seu estatuto sempre foi o de banda de culto ( apesar de um breve flirt com o mainstream por alturas do seminal “ For Your Own Special Sweetheart”) , nome mítico da era dourada do post-hardcore em Washington que fez história nos anos 90 ao ponto de influenciar gigantes como os Deftones(sobretudo Chino Moreno). E tal como aconteceu com os Pavement, o anúncio de uma tour de reunião era por si só um enorme acontecimento, uma oportunidade de testemunhar ao vivo uma banda que muitos pensavam pertencer aos arquivos de um underground perdido. Mas não, a fantasia tornou-se realidade e a sensação, ao vê-los em palco , foi de uma felicidade bem especial, nos momentos de maior emoção bem perto de chegar às lágrimas. Porquê? Porque eram os Jawbox que ali estavam, caraças, a recordar malhas que são hinos de um movimento e que ainda hoje soam apaixonantes -aquele diálogo entre majestosas guitarras em ebulição e ternas melodias atmosféricas permanece encantador , mesmo que o tempo tenha passado e eles envelhecido .
O concerto até esteve longe de ser perfeito, “assombrado" que foi por uns quantos problemas técnicos( tarola que teve de ser substituída, amplificador a avariar) e um J. Robbins que “deixou a voz em Barcelona”, mas nada disso, no fim, importou. Não quando clássicos eternos como “Desert Sea”, “ Cutoff “ e a esplêndida “Savory “ - que arrepio é escutá-la ao vivo, porra - fazem vibrar a alma de quem só queria uma chance de as sentir na pele. Foi mesmo lindo, um momento que o coração para sempre guardará.
Pelo meio ainda houve os sons tão pulsantes quanto vagarosos dos texanos Khruangbin, funk tropical envolto num manto de psicadelismo relaxante que também viaja pelo legado do surf rock ou até do dub. Na verdade, toda a essência da banda é uma enorme viagem sem limites - pertencem ao mundo e pela sua história musical navegam livremente para a poderem adaptar ao presente. Nesta ocasião, até referências à música popular decidiram incorporar - Bowie e Chris Isaak foram alguns dos contemplados - o que foi um gesto inegavelmente louvável, embora o trio tenha material original em número suficiente para não ter de recorrer ao poço das covers. Mas isso é somente um pequeno pormenor que nem tem assim muita importância. O que realmente importa, no entanto, é que são uma máquina muitíssimo bem oleada: o groove que Laura Lee arranca do seu baixo é verdadeiramente demolidor e parece ganhar vida própria -quando aquelas cordas vibram, algo se move - enquanto que o tom quente e sonhador da guitarra de Mark Speer é o ingrediente especial que parece levar a música em múltiplas direções exóticas. No final, fizeram com que a multidão dançasse, aplaudisse e, claro, “viajasse”.
Mas se os Khruangbin estiveram bem, a britânica Little Simz foi um fenômeno, um furacão que passou pelo Primavera para mostrar como algum do melhor hip-hop é hoje feito no feminino. A sua voz é magistral, carregando uma paixão aliada a um sentimento de urgência absolutamente arrebatador, e a execução de uma eloquência e charme notáveis. E se há uns bons anos que as provas do seu talento já foram dadas, o mais recente “ Sometimes I Might Be Introvert” colocou-a num nível ainda maior de grandeza, sendo que este concerto foi o palco da sua derradeira consagração como uma das mais relevantes e talentosas figuras da música mundial. De “ Venom” ( possivelmente uma das mais arrepiantes faixas da sua discografia) à apoteótica “ Woman”, Little Simz assinou um dos mais fascinantes e bem conseguidos concertos de todo o festival. O mundo cada vez mais lhe pertence.
Parte 3 - Little Simz e Jawbox
A terminar, finalmente, aquele grande momento: o momento em que os Gorillaz de Damon Albarn( e Jamie Hewlett, no campo visual) pisaram um palco nacional. Sentia-se uma atmosfera bem especial no ar - a sensação de que algo estrondoso ia ter lugar - e assim foi, claro está. O que aqui ofereceram foi exatamente esse espetáculo dinâmico, ambicioso e transdisciplinar, com curtas de animação protagonizadas pelas quatro personagens do seu universo fictício a serem exibidas nos ecrãs enquanto a banda atravessava o seu catálogo de canções que foram - e ainda são- banda sonora de milhares de millennials. A primeira, que se seguiu à introdução entusiasmada de Kelvin Mercer( De La Soul), foi logo “ Feel Good Inc.” , clássico intemporal que imediatamente acendeu a chama de uma atuação incendiária.
E se há algo que rapidamente sobressai quando se observa o espetáculo dos Gorillaz, é o maravilhoso sentimento de espírito comunitário: no concerto propriamente dito, com a lista infindável de convidados a darem cor a um imparável mundo sonoro que nunca quis ser monocromático, e por parte do público, que coletivamente celebrava com a banda as músicas que iam sendo enfaticamente libertadas. E falando nos convidados, a lista foi realmente luxuosa: Beck fez uma aparição em “The Valley of the Pagans”, Little Simz voltou a ter um momento de glória- duas vezes numa só noite, que mulher esta -quando subiu ao palco em “Garage Palace”, Bootie Brown ajudou na aprazível recordação de “ Dirty Harry” e Fatoumata Diawara, cantora do Mali, em “Désolé”. E estes foram apenas os convidados presenciais, virtualmente ainda houve duetos com Robert Smith- sim, esse senhor dos The Cure - e com Mos Def. De resto, enquanto músicas emblemáticas como “ Tomorrow Comes Today”, “ Andromeda” ou “Clint Eastwood” iam ecoando por um recinto lotado, tornava-se cada vez mais evidente que a arte dos Gorillaz - transversal a géneros, caldeirão sonoro pulsante onde cabe funk, soul, hip-hop, punk ou dub num formato altamente progressista- simboliza, no fundo, o espírito de celebração global do Primavera. Pode-se mesmo dizer, portanto, que foram a banda ideal para encerrar uma edição triunfal.