Mudando as direções para o palco Vodafone, onde a relva convida ao público a sentar-se, Holly Humberstone estreou-se em Portugal com o seu punk pop. Esta é a prova que o emo está a voltar a chamar a atenção de ouvintes mais novos que ecoaram as músicas da jovem britânica. O estilo “Avril Lavigne conhece Olivia Rodrigo” não é de todo para diminuir o que na verdade é um pop sólido e já pronto para as grandes massas. A maioria das músicas deste primeiro álbum de Humberstone têm a capacidade de hits e apresentam arranjos interessantes, mas a sua presença em palco ainda está por se aprimorar.
Com a noite a avisar um início tremido, Baby Keem começa o seu set provando que não são apenas os laços familiares a Kendrick Lamar que o fazem chegar onde chegou. Ultimamente acompanhando o primo nas presenças de festivais, já que estão ambos na editora de Lamar, é uma falácia subestimá-lo e é precisamente ao vivo que Baby Keem mostra toda a sua fluidez, carácter e carrega uma lírica poderosa em palco. Apresentou maioritariamente o seu “The Melodic Blues”, de 2022, e ainda deixou espaço para as grandiosas “Orange Soda” e “Honest”, do primeiro “Die For My Bitch”. Apesar da prestação ser seguida de perto por olhares curiosos, é em “Family Ties”, desta vez sem o verso de Kendrick, que o público mostra mais animação, salta e canta em uníssono, olhando para o espetáculo de fogo que se apoderou do palco e libertando uma alegria que se preparava para explodir no headliner do dia.
Com presença assídua em Portugal, os The Comet is Coming voltaram para tocar em plena chuva torrencial. Num recinto repleto de guarda-chuvas, foi debaixo de um que se viu a genialidade de Shabaka, que nunca desilude com a sua pujança ao saxofone, fazendo-se acompanhar de Betamax e Danalogue no synth e bateria, respetivamente. O instrumental híbrido de jazz eletrónico da banda londrina tem uma vida própria em palco, pois este nunca é estático e existe sempre espaço para pequenas mudanças. Um autêntico sentimento de improviso, já que os seus discos também são gravados neste mesmo cenário. Com o novo “Hyper Dimensional Expansion Beam” cá fora, ao contrário de quando se apresentaram num pôr do sol digno de Paredes de Coura no ano passado, há uma aura de sons mais futurísticos e uma eletrónica com drone percussiva mais presente que parece ser a guia principal das faixas. Houve tempo para explorar tanto este disco como o marcante “Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery”, que deu um “Summon the Fire” (com direito a uma intro em crescendo avassaladora e solo em saxofone) e uma “Blood of the Past” ritualísticos que impossibilitaram o público de ficar quieto. Foi ali, num dilúvio, que se viram esvoaçar raincoats em braços abertos para receber uma benção em baixo de chuva. “ATOMIC WAVE DANCE” começou uma uma intro de synths e terminou com um solo de bateria com imagem de fundo de estrelas cadentes que tornou difícil tirar os olhos do palco. Tudo gira em torno do celestial e nenhum membro fica para trás, mostrando que todos merecem o pedestal.
O motivo para a maioria das pessoas se deslocarem ao Parque da Cidade naquele dia mesmo dadas aquelas circunstâncias era, sem dúvida, Kendrick Lamar. Para terminar a noite, um performer de alto nível escolheu apresentar-se, para alegria dos fãs, em modo best of, passando por várias fases da sua carreira e agregando os seus maiores sucessos, possibilitando uma maré de canto emocionado. Poucos minutos depois da meia noite e vinte, começa a ecoar “I Want You” de Marvin Gaye, incrivelmente samplada em “The Heart Part 5” do mais recente disco “Mr. Morales & The Big Steppers”.
Assim que Lamar aparece, sozinho em palco, o medo de se apresentar sem banda materializa-se, mas rapidamente os seus atributos artísticos desvanecem essas preocupações. Um rapper com maturidade mais que aprumada, Kendrick é uma das figuras mais influentes que até detém um Pulitzer debaixo do braço. Se os traumas, desafios e vivências de crescimento o levaram até aqui, agora a fama e o ver nascer o seu filho o levaram à terapia. Este lado mais introspetivo da sua saúde mental e o olhar sobre ele mesmo justificam a presença pontual de dançarinos semelhantes fisicamente a Lamar, emulando as suas atitudes, dançando ritmicamente com ele e atuando como se o palco fosse um bairro onde ele mesmo cresceu. A apresentação começou com “N95”, “ELEMENT.” e ”A.D.H.D”. Foi após algumas músicas que o instrumental começou a destacar que talvez ele não estivesse assim tão sozinho como aparentava. Os instrumentais, meticulosamente arranjados para serem elevados musicalmente pareciam estar a ser tocados ao vivo, e possivelmente estavam artistas a tocar atrás das cortinas ou nas laterais. Mesmo que de uma gravação ao vivo se tratasse, o destaque ia para uma bateria forte e captante e uns arranjos de guitarra aguçados que aumentavam a dinâmica com as letras emocionantes de Lamar. Também foram ouvidas “King Kunta”, “Backstreet Freestyle”, “m.A.A.d. city”, “Swimming Pools”, “DNA.”, “HUMBLE.”, “Money Trees”, “Bitch, Don’t Kill My Vibe” e “Alright”.
No final, Baby Keem juntou-se ao palco para “family ties” e “vent”. Depois de ser poder vislumbrar de perto um artista tão completo tanto liricamente como instrumentalmente que a sua prestação deixa qualquer um boquiaberto, a sua atuação termina com “Savior”, um apelo que se deixe de colocar um peso tão grande nos nossos ídolos, que sofrem e sangram, como todos nós. Mais do que um concerto, é uma oportunidade de reflexão pela vivência do outro, de frustração perante a injustiça, de choro pela desigualdade, de grito pela dura realidade, de aclamação pelo talento, de grito pela superação.