Em qualquer outra edição do festival, este seria o dia de descanso. Mas não foi o caso, já que para celebrar a décima edição do Primavera Sound Porto foi acrescentado um quarto dia e, por sinal, o dia com maior oferta de cabeças de cartaz (três!) e ainda um maior leque de opções dentro do género de rock. Para esta comemoração, marcaram presença os Blur, New Order e Halsey como atrações principais - assim como um dia repleto de sol - para a última entrada no recinto do Parque da Cidade.
Mais leves, já que o guarda chuva ficou pendurado em casa, o saltitar entre palcos começou no palco Plenitude com os Pup. A banda de pop punk de Ontário deu um arranque animado, com bons riffs com subtilezas de um hardcore para ouvir em festa de praia, hooks mais aprumados e a voz tão semelhante aos registos de chants entre vários membros da banda convidativos ao público se juntar. Apesar de trazer o novo “THE UNRAVELING OF PUPTHEBAND”, tocaram na maioria faixas do mais conhecido “Morbid Stuff” e ainda “DVP”, de “The Dream is Over”. Conseguiram dar um ambiente mais eufórico com aquele punk adolescente e dançável, sendo o início de um ótimo dia.
Passando para uma variante do punk com ares britânicos, o disco de estreia dos Yard Act, “The Overload”, já se fazia ouvir no palco Porto. O recinto mais massacrado pelo mau tempo já refletia as consequências das grandes chuvas, apresentando um piso lamacento seco com cheiros dúbios. O som desviava as atenções disso. Este novo grupo de post-punk está à altura do hype das bandas do mesmo género que saem do Reino Unido e ainda lhes juntam um pouco de Britpop que pede o bater do pé em compasso marcado. James Smith encabeça a banda com a sua voz, e, à semelhança de líder, proclama em bom som ao estilo falado as suas letras cheias de humor sarcástico ( como em “Payday”) e que parecem contar histórias entre amigos (como em “Rich”). Apesar do atraso, compensaram pela garra e hiperatividade em palco, mostrando toda a vontade de vingar na indústria e deixarem a sua marca. Digamos que foram bem sucedidos nessa demanda.
Uma banda que fez um regresso tão inesperado quanto merecido foram os Sparks. A banda dos irmãos Mael, depois de cerca de 50 anos de carreira, fazem parte dos grandes festivais de verão, talvez pela recente aclamação do documentário homónimo realizado por Edgar Wright, ou até pela banda sonora feita por eles no vencedor “Annette” em Cannes. A verdade é que é de admirar a resiliência desta dupla que se manteve fiel à sua fórmula, lutou pela consistência do seu som e influenciou vários pelo caminho. Foram décadas de persistência até verem a recompensa. Agora com o novo disco “The Girl Is Crying In Her Latte” têm acesso a um novo público. Mantém o seu rock disco-electrónico bem assente, sempre com o teclado de Russel - sempre com o seu bigode e óculos de marca registada - a demarcar a melodia que sobressai e a voz e presença em palco com um pop performativo de Ron. Não faltaram “Angst In My Pants”, que foi um dos inícios do sintetizador em músicas com um toque rock industrial, próprios para empurrar o público para a dança e a melódica “This Town Ain’t Big Enough For The Both Of Us”, com uma voz cheia de arpeggios e orquestral.
Parte 1
Galeria com Yard Act, Nation of Language e Karate.
No palco Plenitude, Julia Holter obriga a uma paragem obrigatória antes de ver o regresso de Karate. A sua aura angelical, voz tranquilizadora e instrumental atmosférico de cordas dão uma paz coletiva enquanto nos deslumbramos com o leque incrível de instrumentalização em palco, construção complexa de sonoridades e, no topo do bolo, a sua presença que vem como uma aparição. Fica sempre a existir a vontade de ver este tipo de concertos em sala fechada e luz sombria. Mas o recinto, bem preparado para o desejado, conseguiu cumprir ao ser possível distinguir as várias camadas das criações de Holter. Para começar, sacou do baú de “Have You In My Wilderness” as mais conhecidas “Sea Calls Me Home” e “Silhouette”. Ainda houve tempo para ouvir algumas novas faixas que ainda não saíram, como “Something in the Room”. Ficou a sensação que o próximo trabalho terá elementos mais psicadélicos e experimentais, estando presentes influências orientais.
Foi após “In The Green Wild” que a curiosidade por Karate se tornou mais forte. Após 18 anos de hiato, os Karate voltaram a fazer digressões. Por ser um evento pouco provável de acontecer, os direções levaram até ao palco Vodafone mesmo entre “There are Ghosts” e “Diazapam”, de “The Bed is in the Ocean”. É um voltar aos anos 90 e até a postura em palco faz lembrar essa época em que o rock grunge vingava. Agora mais velhos, mantêm um estilo parado no tempo e, tal como se tivessem a voltar a desenferrujar a máquina, permanecem estáticos e atentos aos acordes e à letra, perfeccionistas na vontade de entregar aos fãs o que outrora foi a sua vida na música. Vindos da label “Numero Group” - que contém nomes como Duster e Unwound que tocavam nesse mesmo dia - há um slowcore firme na banda norte-americana. Assim que “Original Spies” começa a soar no recinto, o público já está mais emaranhado, de olhos fechados com um headbanging de leve, e a viagem já vai mais cerrada. Passaram pelos quatros discos da sua carreira, terminando com duas grandes de “Unsolved”: “Sever” e “ This Day Next Year”. É música para deixar a mente não se agarrar à realidade, permitindo-a pairar entre o sonho e a reflexão. É notório que, assim que o concerto de poucas palavras ao público acabou, e depois do longo instrumental da última faixa, houve um despertar coletivo em que as pessoas voltaram a perceber onde estavam e com quem, dando a impressão que foram mais além.
Já de noite, Yves Tumor voltou pelo segundo ano consecutivo a Portugal. Numa plateia lotada, o artista faz-se acompanhar de um krautrock elétrico, rock experimental e até industrial para elevar a pujança do público, porém o resultado fica aquém na reação das pessoas, que carecem de energia até ao final. Mesmo com uma presença caótica e intensa a ecoar do palco, começou-se a notar em quem via o espetáculo a correria dos quatro dias de festival e do mar de bandas mais rock que o último dia continha. Apresentaram o álbum mais recente e lançado este ano, tocando “Ghospel For a New Century” e “Kerosene!”, talvez as que despertassem mais atenção.
Com pouco tempo para descansos, os New Order começavam a sua pista de dança no palco ao lado. Com o recinto acústico e inclinado, foi uma autêntica festa de melhores hits. É verdade que a setlist se assemelhava bastante ao que haviam dado em 2019 em Paredes de Coura, mas foi um encontro perfeito entre palco e a hospitalidade do público que irá sempre receber de braços abertos os mestres do synthpop. As conhecidas “Age of Consent” e “Bizarre Love Triangle” não podiam faltar, dando aso a todas as gerações para se juntarem num só coro. É realmente uma pena que este concerto tenha sido manchado pelas falhas técnicas, contando com dois momentos em que o som foi abaixo em “True Faith”. Era visível o descontentamento, com razão, por parte da banda, que se afastou do palco por alguns momentos e isso levou alguns a procurar um bom lugar para Blur. Foi na terceira tentativa que o espetáculo seguiu viagem, passando por “Blue Monday” e terminando com a habitual “Love Will Tear Us Apart”, dos saudosos e sempre relembrados Joy Divison.
Parte 2
Galeria com Yves Tumor e New Order.
Dez anos depois, os Blur voltaram ao Parque da Cidade, tornando esta comemoração de dez edições ainda mais especial. Depois de Damon Albarn e os seus Gorillaz terem marcado presença na edição do ano passado, ele traz agora consigo o culminar de tudo. Os britânicos são um marco na vida de tantos que cresceram a jogar nas primeiras PlayStations a ouvir “Song2” e que passavam tardes com a MTV ligada e volta e meia aparecia o vídeoclip do pacote de leite à procura da sua metade em “Coffee & TV”. Foi a estes ouvintes que esta banda surgiu como uma introdução ao indie rock e britpop com toques de shoegaze, com melodias tão animadoras como autênticos hinos. E, de certa forma, estas faixas retratam uma geração inteira através das suas músicas que espelham tão bem pedaços da vida quotidiana no Reino Unido. Depois de décadas, há uma nova maturidade em palco, nunca passando por momentos mortos. O público reconhece e canta a pulmões cheios sucessos como “There’s No Other Way”, “Beetlebum”, as faixas atrás mencionadas, “Country House”, “Parklife”, “Girls & Boys”. Darem um concerto deste calibre tem destas coisas, passarem por tantas músicas que todos já ouviram e já viveram momentos da vida ao som de alguma delas. Cria-se uma atmosfera ao redor de alegria e nostalgia, e vemos o quão longe chegamos depois de termos sido os pré adolescentes de 12 anos com um rádio e um gravador a fazer cassetes de Blur. Que venham daqui a dez anos novamente porque, se possível, estaremos lá.
E dessa vez, fazemos questão de assistir até ao final. Para esta edição, os horários conflituosos do último dia fizeram com que Unwound fosse a escolha para terminar um festival atribulado mas bem sucedido. É que a última vez que a banda norte-americana tinha estado em digressão foi em 2002 e sabe-se lá quando voltarão. Num palco Vodafone praticamente vazio, os sedentos por post-hardcore e slowcore juntavam-se às grades, preparados para uma experiência transcendente. À semelhança de Slint, têm daqueles sons transportadores para zonas para além da vida. Talvez por terem estado em atividade durante pouco tempo, a sua adoração é de culto. Porém, soam como se nenhum ano se tenha passado desde a separação. Começaram com “Abstracktions”, uma ode a enfrentar o que está retido e deixar a beleza da tristeza vir ao de cima. Depois passaram por várias malhas desse álbum, “New Plastic Ideas”, dando lugar a riffs mais pesados em “All Souls Day”, pujança em “Envelope” e melodia em “Hexenzscene”. O noise rock está incrivelmente presente, especialmente em “New Energy”. Assim que soa a “Corpse Pose”, de “Repetitions”, o público entra numa espiral de mosh, ainda que a meio gás pela pouca quantidade de pessoas.
O horário não foi muito simpático com esta banda, que poderia chegar a mais pessoas dada a sua genialidade e entrega em palco. O vocalista Justin Trosper não se dirigiu muito ao público, não fosse quebrar o estado de êxtase alcançado. Mas deixou um breve “Vern would really like to be here”, referindo se ao antigo membro de Unwound que faleceu em 2020. Ainda houve tempo para temas do disco de estreia “Fake Train”, acabando com a “Were, Are and Was or Is”, que deixa a distorção tomar conta do cenário, elevando todos a um estado de hipnose. Enquanto o último acorde distorcido ecoava, as rosas distribuídas por quatro vasos em frente ao palco foram atiradas ao público por todos os membros da banda, terminando num gesto de agradecimento que geralmente ocorre do outro lado do palco. Foi de uma beleza desigual e transpareceu uma humildade e entrega desmedida.
Parte 3
Galeria com Blur e Unwound.