Após um dia a vaguear pela bela e gentrificada cidade de Haia, o plano foi ver Royal Conservatoire String Ensemble tocar aquele que é, provavelmente, o trabalho mais desinteressante de Tristan Perish, o Active Field. Sem surpresas. O que valeu foi Raphael Vanoli, guitarrista holandês que, com a sua técnica de soprar nas cordas, faz a guitarra soar como se nunca tinha ouvido antes. Com pena, saiu-se entre músicas e aplausos para tentar ver Širom na Koorenhuis Zaal. Infelizmente, a zaal estava esgotada. Ficou-se para ver Ben Vince, nome recente da cena experimental britânica, na Koorenhuis foyer. Vince utiliza repetição em forma de loops para criar paisagens sonoras minimalistas e progressivas muito ao estilo de Colin Stetson, um bocado mais calmo e com bass bem mais acetinado e profundo, recomenda-se! Era hora das primeiras decisões difíceis da noite: ver Mia Zabela James Plotkin & Benjamin Finger e depois Fatima Al Qadiri ou Joshua Abrams e companhia? Optou-se pela quantidade, não se refletindo em qualidade. Na igreja, Finger sintetizava soundscapes ambiente com melodias chatas, Plotkin manuseava a sua guitarra praticamente inaudível enquanto Zabela se encarregava de dar vida às composições empregando dissonância e textura. Saiu-se a meio, mas o violino de Mia rendeu a estadia.
Da Hyperdub, Fatima Al Qadiri apresentava Sha7eem que na prática, apresenta uma série de músicas que parecem inacabadas e maioritariamente arrítmicas com grandes influências do médio oriente, felizmente acompanhada por um bom espetáculo audiovisual, permanecendo sentada, de costas para o público e de cabeça tapada. Foi-se até à sala ao lado por Amar 808, autoproclamado “futurista do norte de África”, Sofyann Ben Youssef, acompanhado pelos conterrâneos Cheb Hassen Tej e Mehdi Nassouli, tal como o cantor argelino Sofian Saidi. De futurista não teve muito, mas foi incrível o resultado da mistura dos sons acústicos do Magrehb com o bass bem profundo da TR-808. Mais decisões: voar sobre os mantos psicadélicos dos sintetizadores de Kathlyn Aurelia Smith ou o clarinete e guitarra de Zimpel/Ziolek? Moeda ao ar, ganha Zimpel/Ziołek à melhor de três! Ainda boquiabertos com a produtora espanhola Jass e desconsolados com Deena Abdelwahed, eis uma escolha fácil para a noite: Floating Points e a fraca abordagem progressiva/minimalista que foi Ratio, ou os monstruosos beats & bass da Discowoman Ziur? Ziuuur, fácil! Por vezes inclassificável, a produtora de Berlim entregou o que U Feel Anything? prometia. Beats mutantes de uma série de influências díspares, culminando em faixas originais, no real sentido da palavra. E a seguir? Três horas do high-octane techno de Umfang e Volvox! O que mais se podia pedir? Mais três horas ainda!

O segundo dia começou com o concerto de Irreversible Entanglements, que é como quem diz Camae Ayewa (Moor Mother) na voz, Keir Neuringer no saxofone alto, Aquiles Navarro no trompete, Luke Stewart no contrabaixo e Tcheser Holmes na bateria. Deram ao Rewire o seu free-ish jazz dançável de alta voltagem com spoken word a tresandar a segregação, proporcionando uma constante batalha entre o corpo e a mente. Pouco depois viu-se um dos melhores concertos do festival, a combinação explosiva entre os americanos Arto Lindsay (guitarra desafinada e voz) e Zs – mighty Greg Fox (percussão), mighty Patrick Higgins (guitarra) e mighty Sam Hillmer (saxofone tenor). O resultado foi um free rock monstruoso com uns toques tropicais e letras maioritariamente em brasileiro. O sotaque de Lindsay foi por vezes perturbador, o que só acrescentou ao surrealismo das composições. A bateria de Fox foi texturada, tribal e pesada, como nos tem habituado, reafirmando-se como um dos bateristas mais importantes da atualidade. A guitarra de Higgins foi mais livre e psicadélica do que tem sido hábito quando toca como Zs, mostrando o porquê de ser um dos melhores guitarristas a surgir do outro lado do Atlântico. Hillmer foi Hillmer, no melhor sentido. Com o seu saxofone, ora sustido e minimalista, ora livre e percussivo e vice versa. Para acabar em grande, uma versão Lindsay-esca de Corps para deleite de muitos que gritavam e assobiavam aos primeiros sinais do tema.
Para aquecer para a noite que viria, Stephan Meidell & Ensemble, onde a música barroca e o techno se encontram, eram destino imperdível. Soa horrível não? Se já ouviram Metrics, sabem como é incrível. Meidell é primariamente guitarrista, mas o álbum é tudo menos centrado na guitarra. Munindo-se de uma drum machine, um mixer sem input, uma tape machine e um sintetizador, Meidell podia gravar um álbum e dar concertos sozinho, mas são os arranjos clássicos que tudo seguram e que fazem deste, um dos melhores álbuns do ano passado. Pesado no som e no conteúdo lírico, eis Chino Amobe. No pouco tempo que restava deu para ver Amobe rappar e gritar sobre a sua club music industrial com o ocasional pica miolos “welcome to Paradiso” e “you are now listening to worldwide radio with Chino Amobe” tal como no álbum. Recomenda-se.
Na sala ao lado, começava Karen Gwire, que iria tocar Rembo ao vivo. Durante 40 minutos oscilou entre o kick-clap ghetto house de “The Workers Are on Strike” e os broken beats de “Yes, But I Didn't Know They Were Owls”, com os sintetizadores sempre a pingar ácido. Nina Kraviz, produtora e DJ de Irkutsk, Sibéria, trouxe um dj set especial repleto de faixas de produtores de Haia. Entre techno minimal e industrial, com algum experimentalismo e sloppy-djing à mistura, Nina não desiludiu.

Para primeiro concerto do último dia tivemos Ivan Vukosavljevic & Il Hoon Son. Piano e guitarra no seu estado mais íntimo, onde a ressonância da guitarra e do piano colidem numa refinada e minimalista palete de sons. Belo concerto a antecipar Beatriz Ferreyra. A compositora argentina de 81 anos, fez bom uso do efeito stereo para nos dar três peças, todas compostas antes dos anos 90. A primeira de cordas, a segunda de voz – de uma rapariga que queria ser cantora, mas morreu cedo num acidente, contou Beatriz – e por último, uma peça mais barulhenta, empregando uma panóplia de sons que pareciam ser de origem eletrônica, oferecendo dos 45 minutos mais bem passados do festival.
Em Rupert Clervaux & Ben Vince encontraram-se variações entre krautrock minimalista com saxofone, baixo e um free-jazz-rock nas passagens. Foi bom, abanou-se a cabeça, o corpo e o espírito num estado permanente de quase-trance. Não inventaram nada de novo, mas fizeram-no bem. Com algum jogo de cintura, dava tempo para visitar a compositora coreana Park Jiha e o experimentalista japonês Sugai Ken, mas quando chegamos ao Korzo já se fazia fila para Sugai Ken. Valeu a pena a espera? Se valeu! “Naaturaaal… Artificiaaal…” Mais um excelente momento deste festival. O produtor japonês apresentou-se numa sala completamente escura onde a única fonte de luz eram os seus instrumentos. Aplicou sons eletrónicos esparsos sobre mandos de field-recordings com a ocasional voz metálica pitched-down monocordicamente dizendo: “Naaturaaal… Artificiaaal…” – foi tudo como um sonho. Durante o festival vimos uma série de artistas que gostam de turvar a barreira entre o natural e o artificial, mas ninguém o fez tão bem como Sugai Ken.
Tomando em conta o contexto económico que se vive na Holanda, este é um festival que pelo seu preço de inclusão, dispensa qualquer dúvida que haja no que toca a “valer a pena” ou não. Não só vale a pena como ainda pode valer por uma experiência única e extraordinária pelo preço que exige Há questões a abordar e tomar em conta, como a lotação limitada e o pouco ou quase nenhum controle na venda de passes e bilhetes, ou frequentes sobreposições e filas. A vida é feita de sacrifícios, e o Rewire lembra-nos que há males, que por vezes vêm por bem.
