
“We’re all on the brink of despair, all we can do is look each other in the face, keep each other company, joke a little… don’t you agree?”
- La Grande Belleza, Paolo Sorrentino
Em 2016 Touché Amoré lançam Stage Four, um álbum fortemente conceptual que enfrenta a dor e a felicidade da memória, e dos últimos meses de vida da mãe de Jeremy Bolm, vocalista da banda. O título é simultaneamente uma marca de quarto lançamento de originais na discografia da banda, e referência à causa da morte da mãe do vocalista. Mesmo colecionando algumas das faixas mais celebrativas e melódicas que a banda produziu até agora, testemunha também um momento de grande sinceridade e dolorosa lembrança por parte de Jeremy. Faixas como a “Flowers and You”, “New Halloween”, “Rapture” e “Skycraper” mostram o humilde frontman na sua mais vulnerável contribuição à música da banda.
Presentemente testemunhamos o crescimento dos Code Orange fora da sua zona de conforto. Forever, o seu último registo, e primeiro a ser lançado a partir da Roadrunner Records, é um desenho frontal da ambição despida do grupo em conquistar terreno como blocos de batalha. Com um som voraz e faminto de agressividade, conseguimos entender como tantos aficionados do metalcore e hardcore beatdown, encontram facilidade em digerir a moldura surpreendentemente hostil deste álbum. Semelhante ao seu antecessor, o grupo continua a elaborar argumentos em função do peso, mas não dispensam brincar e explorar com as profundas camadas da música experimental em função da atmosfera. Faixas como “Forever”, “Kill The Creator”, “Real”, “The Mud” exibem a insistência da banda em riffs hidráulicos em divisões bélicas de ruído e descompostura, enquanto que a “Bleeding In The Blur” e “Ugly” são óbvios soslaios do rock/metal alternativo que a banda admite ser forte influência na sua música.
Olhamos à nossa volta e vemos que isto é muito mais do que um concerto. Reconhecemos muitas caras familiares e grupos de amizades próximas e íntimas a viverem esta noite com uma nostálgica importância, reencontros de família e amigos, que já há muito pediam para se verem, mas verdade é que quando tudo isto é tão inesperado, sabe ainda melhor. A fila à entrada do RCA, que perdurou até quase o final do set de Somber Rites, fez-nos questionar a necessidade de tamanha salvaguarda em cima da banda de abertura, que merece tanta atenção quanto as cabeças de cartaz. Não discutimos a filtração de armas à entrada, isso importa, mas fazê-lo com tão pouco tempo de antecedência, ao ponto de nos limitar a entrada até à última música de Somber Rites, levanta algumas dúvidas sobre se esta é de facto a melhor maneira de persuadir as pessoas a apoiar a venue.
Ainda com a mente focada neste primeiro contacto com o evento, deparamo-nos com algo ainda mais constrangedor ao vermos aquilo que aparenta ser um grupo de miúdos a aquecerem para uma luta de kick-box, rotativos de perna no ar e braços a rodarem punhos fechados. Não sabemos ao certo por e para quê isto mas com a entrada de Carbin no palco, após uma cover muito esforçada de “Redneck Stomp” de Obituary, apercebemo-nos do quão desiludidos estamos com esta nova vaga de associados ao hardcore. Apesar da nova geração, que só conseguiu contribuir para uma atmosfera puramente tóxica, os Carbin não se portaram mal com o seu hardcore deslavado em death metal, numa performance mediana que deu para safar a antecipação até Code Orange. No caso destes, maioritariamente desinspirados e certamente cansados física e mentalmente, numa altura de grande atividade mediática, ainda conseguiram entregar ao público uma merecida performance a altura de ser relembrada no futuro.
A acústica do RCA não é a ideal para abraçar o sufoco das mais recentes malhas dos americanos mas não podemos deixar de sublinhar a forma como a sala incubiu num êxtase perante a impressão do som aos ouvidos do público. A abrir as contas com a “Forever”, a banda consegue prender o público à parede com determinação e força. Guitarras embaladas num músculo de propulsão, como um paredão de tijolo a atingir o desarmado ouvinte, faz-se sentir com tremendo impacto e um gemido de esforço. Malhas como a “Kill The Creator”, “Slowburn”, “I Am King” e “The Mud” foram demonstração absoluta da fácil conquista que a banda obteve perante um público inerente à chacina física. Entre abas de peso e ruído de distorção sentimos o mergulho da lâmina contra os flancos do pescoço, como marteladas sucessivas num loop virtual.
“Bleeding In The Blur” e “My World” foram os momentos altos da noite, energia e intensidade acima de tudo, público ao rubro, do palco até ao fundo, sem espaço para respirar e força para contrariar. Mesmo num contraste inevitável, dá para perceber perfeitamente até onde esta banda vai chegar num futuro próximo.
Quase imediatamente ao fecho da última malha, dos agradecimentos à banda e aos apertos de mão entre público, acompanhámos a horda até à zona central da sala, mesmo em frente ao palco, onde por regra sabemos muito bem ser o epicentro de qualquer concerto de Touché Amoré. Sabíamos que ia ser emotivo, do ínicio ao fim, mas não esperávamos algo tão visceral e frontal, físico e simultaneamente espiritual, tão próximo e ao mesmo tempo inconsequente, como se naquele preciso momento nada mais importasse senão os primeiros acordes da “Flowers And You”. Imediatamente vemos mergulhos, o público sucintamente empurrado para um parágrafo de emoções e despedidas emotivas. Todos em sincronia:
“I'm heartsick and well rehearsed / Highly decorated with a badge that reads "It could be worse" / So prideful I choose to live in disguise / With a levee set for my heavy eyes”
Um concerto que pouco trabalho deu a Jeremy, como já é de costume, pois o microfone passava muitas vezes de mão em mão e de timbre em timbre. Malhas como a “New Halloween”, “Rapture”, “Benediction” e “Just Exist” foram momentos de elevado jogo emocional, vozes a repartir num rasgar de versos, estrofes e lágrimas de cansaço. Com tanto em jogo ao longo desta hora de luta cardíaca, entre marés de molduras e ondas de navegadores a atirarem-se do topo do palco para o mais distante ponto do navio. Castigo que sabe como bendição e um sentido de sacrifício que é sempre compensado de retorno, “apanha-me quando saltar e não te deixarei cair neste chão”.
Momentos altos como o retorno às mais marcantes faixas do Parting The Sea (...), são os motivos pelos quais o hardcore/punk nunca morrerá diante desta banda. Sem uma única palavra em falha, sente-se o ecoar perpétuo das vozes ao longo das colunas e paredes da sala. Apesar do muito espaço de sobra nas áreas mais recuadas desta, o público faz muita questão de se aproximar até Jeremy, exatamente onde devolvem a sensação que vezes sem conta ele nos ilustrou “you’re not alone” na sua música. Quase a colocar por término esta noite de verão brindada com roupas suadas e profundamente agrafadas ao fundo do peito, despedimo-nos da banda com a “Honest Sleep” do primeiro álbum, onde sentimos como um breve adeus que nunca teremos a certeza ser o último ou não, a sensação de sabemos exatamente aquilo que todos sentimos por Lisboa e por noites como esta:
“I’m losing sleep / I’m losing friends / I’ve got a love/hate/love with the city I’m in / I’ll count the hours, having just one wish / If I’m doing fine, there’s no point to this.“