No dia 27 de outubro, a cidade Invicta levitou sobre o planalto da Praça Infante D. Henrique. Mesmo no berço da zona histórica da cidade, encontravam-se inúmeras caras familiares, sorridentes e plenamente entregues ao aconchegar dos gélidos ventos que populavam a cidade. As baixas temperaturas já se encontravam em vigor, ao que não faltaram motivos para a entrada no tão familiar Hard Club. O monólito kubrickiano em sangue vivo abriu caminho para o anoitecer. Quando lá dentro, é difícil não observar o soslaio daquilo que foi o Amplifest que contou com a presença de Yob em 2014 e Wiegedood em 2015. Neles ainda percorrem os olhares, os sorrisos, os abraços, a saudade. Passaram alguns anos e a aura permanece mais viva que nunca. Apesar de ainda não se poder matar as saudades, tem-se ainda algo vital, imperdível e (para alguns) muito espiritual, nas entranhas da sala 2 da estrutura.
Soube-se que os bilhetes haviam esgotado, por isso é seguro sublinhar o privilégio de acolher o retorno dos lendários Yob. O acompanhamento dos belgas Wiegedood, do coletivo Church Of Ra, foi sem dúvida um bónus a altura. Promovendo agora o ciclo completo da trilogia De Doden Hebben Het Goed, o trio belga colocou a saga em sangrento assalto. É com um equilíbrio perfeito entre intensidade, vibração e emoção que estes belgas conseguem algo especial. Mesmo não havendo muito espaço para notas graves, as melodias trancam o corpo em perfeita força de controlo. Sujeitando os riffs monstruosos a uma velocidade estonteante entre convalescentes blast beats e descargas energéticas, o grupo não só consegue dilatar o som como ainda ganha ângulo para o expandir. Em perfeita evidencia disso, estão a “Ontzieling” e “Cataract” que abriram a noite como lâminas bem aguçadas. Com este trio não há respostas fáceis à premissa do black metal, sendo o intuito o de brutalizar emoções e paisagens devastadoras, a banda fá-lo com estilo, atitude e uma filosofia muito mais “moderna”, do que a tradicionalmente observada. A banda fechou com “Prowl” e “Onder.Gaan Voznesenie”, onde tanto uma como a outra, ajudaram a sala a encontrar uma forma mais encorpada e declarada para culminar esta abertura, como um punho cerrado ou betão maciço, à rendição total.
Levando adiante as cerimónias, a sala compactou-se com a chegada de Mike Scheidt e seus compatriotas ao palco. Aquilo que veio após o prolongado soundcheck, foi algo de íntimo, visceral e divino. Os norte-americanos sempre possuíram essa vibração, e a sala esgotada estava bem ciente disso. Mas poder compenetrar toda a presença transversal de “Ablaze” em toda a sua melodiosa glória, é algo verdadeiramente indescritível. Empurrando massivos riffs compostos pela força, determinação e alento de todo o peso de alma que Mike ultrapassou neste últimos anos, sente-se a íntima conexão entre quem ouve e quem toca. Com a ensurdecedora reacção após o riff inicial da “The Screen”, a impulsionar o corpo plural do monólito, servem as impiedosas, mecânicas e estrondosas marteladas na têmpora, para ver que tal como Mike entrega o seu corpo à arte, o público entrega o seu corpo ao som.
O foco não recai somente em Scheidt. A atmosfera global da banda funciona como engrenagens de carne, osso e alma. Os solavancos estruturais de “The Lie That Is Sin”, o transporte cósmico de “Grasping Air”, enquanto bem acompanhados pelo Levy de Wiegedood, e até a title-track de Our Raw Heart, só ajudam a sublinhar o quão genuína, sincera e sólida, esta química procria em momentos de luta. Como se não bastasse, após uma hora de muita emoção e movimento, caiu sobre todos, o pináculo, o auge, o zênite, de uma noite para relembrar: “Marrow”.
“All these words / Are dust within my mind / In these times That burn within our sight / Yearning to know / Deep into the marrow”
Observando pelas expressões, o delírio é comum, omnipresente. O êxtase compõe-se em forma de pequenas pinceladas, cordas suaves e com a batida a ressoar em cada tendão. A distorção pesa um mundo inteiro, mas aquilo que torna Yob tão único, desesperantemente humano e verdadeiro, é o seu epicentro. A melodia, o contraste, o sentido berro no topo do corpo celestial, e a lágrima da face completamente entregue à existência. Com Yob, não se pode apenas ouvir ou “sentir” na banal definição da palavra. É digno de se ser aquilo que se ouve. Embalsamar o ruído, encarnar a ressonância, e simplesmente deixar ir. Como se em terra naufragarem, após do Porto levitarem, nada mudará esta noite, e o especial significado que esta ganhou após este concerto memorável.
É com um sorriso enorme que o Mike recebe o público apaixonado, e é com um sorriso que todos saem desta viagem. O retorno de uma viagem destas é sempre incerto. É por isso que importa saborear enquanto se pode.