No início de junho deste ano, o frontman Charles Parks Junior anunciou o lançamento de um novo álbum nas redes sociais da banda. Falou-nos sobre uma perda de orientação por parte da Humanidade, sobre dar ao ego a atenção errada, sobre preocupações, objetivos e prazeres triviais, sobre um sentimento de superioridade que conduz à apatia e ao egoísmo, à negação e à estagnação da evolução espiritual do Homem. Nothing as the Ideal nasce então da necessidade de oscilar na direção oposta, fruto de um “retorno ao centro” enquanto retorno da tomada de consciência de que a capacidade de escolha, ação, união e empatia estão ainda ao nosso alcance.
Desde Our Mother Electricity, de 2012, que All Them Witches nos têm mostrado um nível de destreza musical consistente e verdadeiramente único, como se sempre soubessem como queriam soar, e a partir daqui continuaram a adicionar influências sem descartar as bases: jams de folk e blues rock vão parar ao rock psicadélico, que vira stoner rock e desert rock, que ganha dimensões sludgy e doom, e tudo coexiste de forma equilibrada dentro da discografia de All Them Witches. No que toca a este LP, a atração mais afincada pelo metal pode, de alguma maneira, justificar-se através da digressão com Ghost, embora seja desonesto dizer-se que foram buscar de Ghost algum tipo de influência direta; mas quando se trata de explorar as técnicas musicais do género, talvez esta turnê tenha servido como uma espécie de catalisador. De qualquer forma, já parecia haver em ATW alguma vontade de puxar pela densidade, sendo que, em outubro a fun-loving vibe do homólogo de 2018 se viu cortada pelo single “1X1”, que estava a carregar na tecla do stoner mais pesado e enegrecido. “1X1” acabou por não fazer parte do alinhamento de Nothing as the Ideal, mas fez com que o burburinho do lançamento de um álbum mais carregado crescesse entre o público ouvinte.
A primeira faixa, “Saturnine & Iron Jaw”, apresenta-se com os efeitos sonoros distorcidos, com a repetição incompreensível e obscura daquilo que podemos assumir serem palavras, e duas notas a fazer o efeito pendular de um sino. Esta introdução esbate-se com o ranger de uma porta a abrir e uma guitarra acústica que nos encaminha para o alpendre de uma casa de campo. As pancadas no snare desligam as luzes e ficamos já a saber a que é que soa uma música de All Them Witches com fermento de metal. Enquanto música introdutória, desenha-nos a soundscape do álbum: enorme, forte, nasty e cuidadosamente multifacetado. Mas nem todas as músicas deste álbum vão soar à “Saturnine & Iron Jaw” – que também não é necessariamente a mais pesada. Lançada como single em junho, saiu com ela “The Children of Coyote Woman”, uma música folk e minimalista que conta a história de Rómulo e Remo enquanto fundadores de Ouachita Bend. A estratégia de lançamento dos singles foi uma de honestidade e controlo de expectativas: sabemos, desde o início, que não é um álbum compacto no seu tema. Nothing as the Ideal não é um álbum de metal, é um álbum onde os ATW fizeram incluir técnicas musicais de metal.
“The Children of Coyote Woman” tem uma estrutura mais leve e simples, uma referência aos early days e quase que o fim de uma trilogia que começou com as músicas “The Marriage of Coyote Woman” e “The Death of Coyote Woman” do álbum Lightning at the Door, de 2016. Preenchida por cordas e pela voz doce de Parks, tradicionalizada pela adição moderada, mas importante, de uma pandeireta, carrega o mesmo encanto das restantes músicas onde nos falam sobre a figura da mulher-coiote e, tal como elas, é uma faixa agridoce com uma aura pessoal, mas desta vez com uma preferência pela paleta de sonoridades southern, sendo que neste caso deixaram o psych mais para trás.
Existem três outras faixas neste álbum que correm numa direção mais palpavelmente metal. “Enemy of My Enemy” tem bom apetite para as escalas, muito embora não deixem de descarregar os remoinhos psicadélicos da guitarra de Ben McLeod. Perto do final desta faixa, pedem emprestada a força de uma música de Lamb of God, interrompida novamente pela queda-livre hipnotizante do suspeito do costume: a guitarra de Ben. A voz de Parks usa uma suavidade mais matizante em “41”, conjugada com a monumentalidade de riffs a apontar para o funeral doom ferrugento. “41” é uma música de grande estatura que parece existir só para nos deixar sem palavras. A short, sweet and sludgy “Lights Out” pede outra vénia à bateria de Staebler, que é a força incontrolável deste disco, enquanto a guitarra de McLeod mantém a vivacidade apocalíptica que lhe é exigida.
O alinhamento deste álbum dá espaço a várias transições emocionais que permitem que cada uma valha por si, com toda a sua vitalidade. A primeira delas está no salto de “Enemy of My Enemy” para “Everest”, uma música que leva o seu tempo, onde cada nota tem oportunidade de se prolongar. É uma música instrumental de lágrimas nos olhos, que nos fala sobre o reconhecimento da solidão e da aceitação serena da desilusão em reverb. Noutro salto, a temática do filme de terror meets desert rock volta com a intro de “See You Next Fall”, uma música que se abre com a convulsão marcada do baixo e rompe-se na distorção de outro riff central duro a acrescentar à lista dos vários que este álbum tem para oferecer. Re-evoca-se a base fuzzy mas descontraída dos sessenta/setenta, tornando-a numa música que cabe bem aqui como em qualquer outro disco de ATW.
As letras em Nothing as the Ideal, ao contrário da grande maioria das letras de ATW, focam-se realisticamente no pessimismo, no antagonismo e na reprovação, expressos com a mesma beleza e graciosidade imensa que nos mostraram anteriormente. Sentimentos de repulsa e desgosto são explorados e digeridos, esclarecidos pelo instrumental e tornados compreensíveis por um narrador instrospetivo. A ir precisamente nessa direção, tanto liricamente quanto a nível do instrumental, “Rats in Ruin” é uma música profundamente expressiva, uma confissão solene de luta e conflito, reconstrução e encerramento, felicidade e paz, que leva este álbum a uma conclusão. Com o perfurar da bateria, há uma acumulação sentimental que se inflama para estourar, e chegamos ao riff mais comovente e enternecedor de Nothing as the Ideal, cortado pelo choro do feedback de uma harmónica que nos faz sentir tudo.
É um álbum construído em torno de uma sobrecarga emocional, que se torna inevitavelmente no seu ponto de focagem, e podemos acreditar que a influência do metal advém disso. A publicação assinada por Parks pareceu-se também com um pedido ao público para que tentassem entender este disco como um todo, começando pelo entendimento da sua origem. Embora tenha havido uma mudança de ritmo e de peso com este disco, a essência de ATW está aqui tão entranhada que não é como se surgisse fora de contexto, embora seja um álbum surpreendente. E é surpreendente pelo virtuosimo absoluto que revelam na sua capacidade para a plasticidade enquanto banda e na adaptação e atenção ao detalhe que faz de All Them Witches uma banda tão feita de alma. Todas as inclinações criativas que sentem são respeitadas com confiança, ao mesmo tempo que preservam o som místico da terra seca do Tennessee que faz parte deles. Não é um disco que tenha um tema cerrado face ao qual todas as faixas teriam de corresponder pura e simplesmente por uma questão de teimosia temática. É um disco diversificado porque é sincero, que se permite a si mesmo respirar, reconhecer e transparecer certas emoções, não apenas para as purgar mas para as entender completamente.