Recentemente reli os volumes completos de The Incal. Obra resultante da mítica colaboração entre Moebius e Jodorowsky. Saída da mente deste último, após ver falhada a sua tentativa de adaptar para o cinema Dune de Frank Herbert, a história leva-nos a um futuro distópico, recheado de aliens, misticismo, corrupção, autoritarismo e revolução. São variados os momentos onde o destino das personagens se sente asfixiado e predestinado a cair nas mãos do Sistema, onde tudo acontece como causalidade do Tempo ser um círculo em constante repetição. Afirmando-se como uma das mais importantes obras da ficção científica, The Incal é a primeira coisa que me vem à cabeça enquanto ouço o álbum de estreia dos Amnesia Scanner, Another Life.
O duo, que se encontra instalado em Berlim, é proveniente da Finlândia e desde o seu EP AS em 2016, têm conquistado o seu lugar como um dos projectos mais inovadores da cena electrónica. Apesar de ainda escaparem ao grande público, as suas colaborações já chegam a nomes como Mykki Blanco, a quem produziram “Booty Bamboo” a título de exemplo. As sonoridades ainda simples e pouco ambiciosas que podemos encontrar na música acima mencionada, servem de estrutura base para o que encontramos em Another Life – um álbum em jeito de banda sonora à espera de um filme futurista o suficiente para o receber.
As estruturas das canções seguem sempre a fórmula clássica do EDM: repetições fortes e intensas, aliadas a uma sonoridade de base bem catchy, e o uso do crescendo para provocar a ideia de efusividade e explosão, que nos leve a saltar e a abanar o corpo. No entanto, após os Amnesia Scanner terem a base estabelecida, desconstroem-na, mudam os elementos de lugar, e adicionam-lhe vozes robóticas e sintetizadores violentos. “AS Too Wrong” é um bom exemplo do que aqui é dito, ocupando um dos lugares de destaque do álbum. Existe uma sonoridade pop, que se cruza com um experimentalismo obscuro e distópico. Aliás, é no campo da distopia que aparece a voz robótica. Esta, segundo o duo, ocupa o lugar de Oráculo, que recorrentemente anuncia a claustrofobia e invasão de privacidade no Universo de Another Life (“Give us solitude”). Para além da clarividência, também a chinesa Pan Daijing empresta a sua voz em duas das faixas do álbum, como é o caso de “AS Chaos” onde o Universo Pop EDM volta a ser desconstruído e transportado para o Sétimo Círculo de Dante. Noutras alturas, as criações (ou desconstruções) de Amnesia Scanner, desaceleram e ganham tonalidades submersíveis, mais escuras e mais ansiosas. Voltamos a ser transportados para The Incal, para os momentos em que John Difool explorava o mundo subterrâneo (em “AS A.WO.L.”), ou quando descobre vida debaixo de água em Aquend (em “AS Daemon”), ou para os momentos de culto negro ao “black Incal” (em “AS Rewind”).
Deveras, quase todas as faixas de Another Life conseguem encontrar um equivalente na minha imaginação com momentos da referida obra de Jodorowsky. Assim como a sua ópera espacial, também o álbum de estreia dos finlandeses é camaleónico, mas sempre cru e demoníaco. Ambos, apresentam-se ao público como uma espécie de profeta do zeitgeist: um mundo mais fácil, cheio de inovação, espelho de um mundo mais sufocante e recheado de ansiedade. Desta forma, um dos meus álbuns favoritos deste ano, cruza-se com um dos meus livros favoritos de todo o sempre, e enquanto o futuro apocalíptico não chega, o leitor leva duas sugestões para casa ao preço de uma.