Ângela Polícia. Um nome que fica na memória não pela sua peculiaridade mas pela simples razão de que basta ouvir até ao fim o seu álbum de estreia Pruridades (“prurido” mais “prioridades”), para nos apercebermos de que estamos a ouvir uma volumosa presença num possível novo panorama de hip-hop e eletrónica alternativos em Portugal.
Ângela Polícia é na realidade um dos alter egos de Fernando Fernandes, melhor conhecido por ser o vocalista da banda de rock bracarense Bed Legs. Neste novo projeto afasta-se por completo das sonoridades revivalistas do blues-rock psicadélico dos anos 60 e 70 que tornaram a sua banda conhecida, para se aventurar destemidamente por terrenos mais inexplorados da música eletrónica. Lançado através da Crate Records, editora lisboeta independente dedicada a difundir novas vanguardas e abordagens ao hip-hop, o álbum prova-se uma grande e mais que apta adição à cada vez menos escassa coleção de álbuns portugueses de música eletrónica de qualidade.
Para além de ser o vocalista Ângela também produziu todas as faixas e é verdadeiramente refrescante sermos levados pelo nosso multifacetado anfitrião através deste álbum. Para além das letras revelarem uma poesia singular, os estilos entrelaçam-se e fundem-se de formas extremamente interessantes para gerarem géneros que são ainda de certa forma inomináveis. Uma das principais qualidades do álbum é a sua diversidade, indo Pruridades buscar inspiração aos mais variados géneros de música eletrónica, desde trap music, dubstep, dub, trip-hop, entre outros, elevando-os significativamente com o seu caraterístico toque pessoal: os seus versos negros e irónicos, a voz assertiva de Ângela, e requintados pormenores nas suas produções musicais.
Do ponto de vista lírico as músicas de Ângela servem, a um nível geral, como a sua análise do mundo que o rodeia: grande parte desse mundo é bastante negra e sem esperança e por isso às vezes é preferível olhar para dentro de si mesmo do que para fora, ainda que por vezes o mundo interior não represente uma grande melhoria. Na primeira track do álbum, “Dor de Língua” Ângela transmite-nos, entre versos mordazes e berros animalescos, uma aversão pelas convencionalidades e expectativas da nossa sociedade e acaba por demonstrar-se preso simultaneamente entre um estado de revolta interior causada pelo caos do nosso mundo apodrecido e um estado de resignação inevitável ao seu apodrecimento. Ao mesmo tempo, com músicas como “Submundo”, parece querer chamar a atenção para uma parte da sociedade que acaba por passar despercebida e ser ignorada por existir e se desenvolver em camadas mais ocultas e paralelas à sociedade comum, mas que ainda assim é composta por seres humanos profundamente criativos e complexos.
Assim, ao longo de pouco mais de meia hora vamos sendo cativados e surpreendidos pelas palavras deste artista, que oscilam rapidamente e de forma curiosamente contrastante entre uma crueza agressiva, uma sensibilidade madura e um humor estranhamente retorcido, e tudo isto sempre com um notável amor à poesia e cuidado com o ritmo de cada palavra. Existem no álbum os mais variados tipos de frases memoráveis. Entre muitos outros, temos o exemplo da track “O Outro Lado”, onde fala: “Sufoca ou troca a tua vida maluca, mata ou esboça o mundo novo que te espera, leva a sério aquilo que te move e escreve na pele: no destino de um homem sem norte a sorte não depende dele lesmo!” (não, não é um erro ortográfico).
Apesar de praticamente todas as faixas do álbum serem dignas de menção, uma das que mais chamou a atenção pelo facto de ter sido o single de avanço acompanhado por videoclip, é a belíssima faixa intitulada “Quarto, pt.1”, em que acompanhamos o artista enquanto fuma um charro no seu quarto e se deixa voar, como o fumo que liberta, através das suas mais íntimas abstrações e pensamentos ocultos. Um baixo bem grave introduz-nos o seu quarto e com o acender do charro somos levados para um bonito refrão composto de arpejos de guitarra e, a partir de um dado momento, uma estridente e inquietante frequência que se arrasta persistentemente para o resto da música, enquanto uma voz nos diz: “Quero fugir mas não posso, perdido num mundo sem norte, acendi o charro e voei para tão longe que não sei onde estou.”
Quando acaba a última track do álbum estamos de certo modo fascinados, sendo difícil não sentir que é um alívio ver que, não só o hip-hop, mas a música eletrónica portuguesa, caminham imprevisivelmente para novos e complexos mundos e não parecem ter intenções de abrandar. É certo que é um álbum que deixa água na boca pelas músicas que ainda virão, de Ângela Polícia certamente, mas também de todos os produtores de eletrónica em Portugal e no mundo que, anónimos nas suas grutas, programam e conjeturam as grandes revoluções musicais do futuro.