O universo do progressivo despertou estremunhado, ao virar do milénio, com a formação daquele que viria a ser o portador, do estandarte máximo do género. Between the Buried and Me, os cinco de North Carolina, davam os primeiros passos em direcção ao estrelato do admirável mundo novo dos compassos complexos, contrastes brutais e mistura de miríade de estilos. O apogeu dá-se em 2007 com o trabalho Colors, “a 65 minute opus of non stop pummeling beautiful music”, abrangendo inúmeros estilos e referências musicais (e de forma tão competente!) e recebendo (apropriadamente ainda que em tom jocoso) a catalogação de banda de “new wave polka grunge” ou “adult contemporary progressive death metal”. Com a barra da qualidade posicionada tão alto afigurava-se árdua a tarefa de a segurar, mas desde The Great Misdirect (2009) até ao enorme Coma Ecliptic (2015), a banda só parece expandir-se, crescer e melhorar. Os projectos paralelos dos vários elementos do grupo não tiram o destaque a Between the Buried and Me e Automata I, primeiro de dois discos deste trabalho conceptual, é a prova disso. Lançado a Março de 2018, a viagem lírica do oitavo álbum da banda versa sobre um mundo em que os sonhos do protagonista são difundidos e teletransmitidos worldwide sob o pretexto de entretenimento. O produtor é o mesmo de sempre: Jamie King, capaz até de misturar com mestria água com azeite, refinando toda a experiência auditiva do disco.
Com um tempo total de 35:13 minutos, Automata I é um pequeno prato introdutório que, ao invés de apaziguar estômagos e saciar apetites, mais não faz do que deixar o provador a salivar por mais. O álbum abre com “Condemned to the Gallows” e o sonho começa: guitarra limpa introdutória, compassos a repudiar o ordinário e entrada triunfal no mundo do peso, do blast beat e do growl mais profissional de sempre de Tommy Rogers. Aquilo que se segue, e pauta todo o disco, é o ex libris da banda: contrastes, equilíbrio seguido de desequilíbrio, ruído contra sons organizados, paz a batalhar a guerra. Desde logo é possível escutar, em jeito de bónus, os pequenos sons electrónicos a lembrar HAL 9000 e todo o sci-fi enraizado nas máquinas, que se coadunam na perfeição com o conceito temático de Automata. Não é possível passar esta faixa sem destacar o monstruoso trabalho do baixista Dan Briggs aos 4:00, com um fraseado limpíssimo e maquinalmente ágil, desbravando escalas em jeitos de valsa.
A modulação por amplitude faz a ligação entre as duas primeiras faixas e “House Organ” entra em cena. Com uma duração mais curta do que as restantes, o tema pode ser analisado em duas partes distintas, novamente peso e leveza. O final é épico, recheado de vocais e harmonizações celestiais, antevendo um final de esperança para todo o enredo (algo pouco usual no contexto da narrativa BTBAMesca). Os primeiros momentos de “Yellow Eyes” trazem atrelado um sentimento de homenagem a Devin Townsend, com um riff que balança pujante suportado por tiradas de sintetizador epiléptico. O tema flui compenetradamente e “the hum of electricity seems to buzz”, nas palavras do vocalista, é um descritor perfeito para aquilo que a faixa representa. O ambiente sincopado aos 3:48 em conjunção com os acordes retumbantes aos 5:16 parecem encaminhar o ouvinte para o auge, o maravilhoso solo de guitarra de Paul Waggoner, uma elegia perfeita ao mestre do legato, Allan Holdsworth, falecido em 2017.
Para gáudio dos mais comedidos e sensíveis da cóclea surge, lúgubre, “Millions”. É preciso mestria fazer um cinco por quatro soar tão natural e fluído! Escuta-se uma estrutura mais directa do que as restantes, tempo a atrasar como se algo puxasse no sentido contrário ao movimento, e refrão que por certo fará levantar as mãos e afinar as vozes da audiência em concertos ao vivo, cantando em uníssono “Millions fly overhead”. A épica “Blot”, faixa mais longa do álbum, encerra este pequeno teaser sonoro da melhor maneira possível, elevando-se instantaneamente ao pódio dos clássicos da banda. Catchy quanto baste, altercações de humores, sólida estrutura composicional e intermezzo electrónico sublime aos 7:20. Todo o processo automático termina com o motivo “exploring the escape” e com a porta entreaberta para aquilo que será a segunda parte do trabalho. O sabor harmónico de “Blot”, com travos a oriente, a calor e areia, não é por certo uma casualidade, não fosse esta componente essencial ao grande plano tecnológico futurista de toda a malta de Silicon Valley, com profundas relações com a temática de Automata.
O ponto importante é que os BTBAM estão de volta. O ponto mais importante é que estão de volta em força e com novas ideias e truques. Ainda mais importante é que isto não fica por aqui e correm já rumores digitais de que o Automata II, agendado para o Verão deste ano, subirá ainda mais a fasquia. Se a analogia qualitativa for The Parallax, o céu é o limite. “Everywhere I look they are there”, na lírica da clássica Sun of Nothing, continua a pautar a relação desta banda com a história do metal progressivo a nível global.
Nota: Este autor utiliza o Antigo Acordo Ortográfico.