Björk é conhecida mundialmente como um Ser de um outro planeta, onde as barreiras da criatividade e do talento têm parâmetros totalmente díspares dos que por cá na Terra fazemos vigorar. Lá do espaço sideral de onde ela vem, o dom de criar é transversal a todas as áreas e acredita-se que o Som é só uma ramificação conceptual da Ideia. Assim, desde a viragem do século com Vespertine, a artista - provavelmente a única pessoa na música que realmente merece esta adjectivação - embarcou numa experienciação, onde cada álbum é uma visão muito própria e acima de tudo muito completa daquilo que a rodeia. Por essa razão, tem-se tornado cada vez mais complicado conseguir interpretar e dissecar as suas músicas, que surgem sempre associadas a algo maior que elas próprias. Este constante desafio e constante evolução fazem de Björk um dos nomes maiores que irão perdurar na história da arte e da humanidade.
Após os The Sugarcubes, a artista islandesa que já gozava de algum sucesso internacional graças à sua voz e ar irreverente de uma eterna infância, lançando em 1993 o álbum Debut. Se ele provocou alguma estranheza, a sua acessibilidade hoje em dia, e em comparação ao resto da sua obra, não é discutida. O facto é que entre esse ano e 1997, Björk brincava, explorava e desconstruía a cena pop emergente que acontecia na Terra. Visionária, marcou e influenciou o futuro das sonoridades electrónicas e da música em geral. Mas com a entrada dos anos 2000, começou a apontar para as auroras boreais, sonhando conceber a partir do desconhecido. Assim surge Vespertine que, apesar de ser um álbum de fácil empatia, aparece como o primeiro álbum da islandesa feito num outro planeta. Era Vénus e, o resto da sua discografia, a partir daí, vai de Marte a Plutão. Em 2015, une-se a um talento emergente, Arca, e prenda-nos com Vulnicura, a sua versão apocalíptica e negra, que como uma calamidade nuclear destrói o último planeta onde vivia. No entanto, em menos de 3 anos a vida recomeça a florescer e num planeta de novo virgem, Bjõrk funde-se a ele e surge Utopia.
O álbum parte da premissa que toda a fauna e flora se re-ergue de uma forma pura e frágil, mas mutada da catástrofe experienciada. Escolhe assim Jesse Kanda e Hungary para dar vida ao que concebeu visualmente e a escolha não poderia ser mais perfeita. Na capa vemos uma Björk diferente, algo monstro marinho, mas nuns tons de mar e pêssego que dão a serenidade certa para a vermos como figura materna da Natureza (o horroroso pássaro bebé embalado no seu pescoço funciona aqui como a chave do mistério).
Musicalmente, esta sociedade primitiva ainda experiencia as possibilidades do sopro, e o que com ele pode fazer. Típico da artista ter um instrumento-rei para cada álbum, desta vez a sua escolha recai na flauta e as suas capacidades. Assim, não é de estranhar que Utopia esteja cheio de camadas e camadas de flautas, aos quais se juntam os mais díspares sons de pássaros e outros bichos voadores, mostrando-nos que a sua visão de perfeição encontra-se na virgindade da terra e de quem a habita.
A escrita também ela evoluiu: Aqui tudo é antítese do anterior álbum de 2015. Temos uma Björk mais despida, onde se centra nas suas capacidades de amar e sentir esperança em vez da angústia e frustração sentida em Vulnicura. No entanto, talvez por ser algo não tão habitual em si, em alguns momentos as letras soam mais confusas (que o costume) e de uma interpretação tão própria que nunca estarão ao nosso alcance. Mas são situações esporádicas que quando ouvimos obras-primas como “Courtship” facilmente esquecemos.
Quando estes dois mundos, de som e palavras, se unem, é aqui que verdadeiramente acontece magia. Neste que é o seu álbum mais extenso de sempre, Björk recorre a fórmulas já usadas por si para limar e afirmar o poder que detém na construção deste seu Universo. É de ficar abismado que ela se repita, mas são pequenos tons que demonstram muito bem a segurança de alguém que sabe aquilo que quer fazer. Em “Arisen My Senses”, re-usa o ritmo vocal de “Wanderlust”, e em “Body Memory” podemos escutar toda a técnica do injustamente mal amado Medúlla. Tal acontecimento é tão necessário e orgânico que quase nos passa despercebido que tal está a acontecer. No entanto, a repetição não fica por aqui e, para este Utopia, a islandesa volta a convidar Arca para se juntar a si como produtor. Desde Michel Gondry que não víamos a cantora a trabalhar com a mesma pessoa. Ora, se no álbum anterior o casamento havia sido perfeito, neste, a conjugação da electrónica negra do Venezuelano com o brilhantismo exacerbado concebido para este genesis, tem momentos em que não se conseguem fundir, causando uma confusão produtiva, ou até mesmo músicas que não se conseguem finalizar a si mesmas. “Sue Me” é um desses casos. Não obstante, noutros momentos a comunhão é perfeita, o que resulta em obras primas como a faixa-título e o primeiro single “The Gate”.
Em 2017 Björk continua a criar a partir do nada, a desafiar-nos a vermos a música de uma forma diferente e a trabalharmos o nosso ouvido de uma forma que transcende o auditivo. Este não é de todo um dos álbuns mais fáceis da artista islandesa, e dificilmente será dos que mais empatia formentará com os seus fãs, mas é sem dúvida um dos melhores registos que até agora criou. É num álbum mutante e deformado que encontramos talvez pela 1ª vez a figura de uma mulher que no fim do contas é humana como nós.