i,i é o mais recente acréscimo à discografia de Bon Iver e é também o álbum mais mediatizado, mais socializado. Numa quebra colossal com o (seu) convencional, este modo mais populista como o álbum é promovido, a visibilidade que Justin Vernon busca, assim como toda a interação social subjacente, demonstram a renovação que se afirma neste álbum e o modo como o artista se apresenta agora.
O tema inaugural “Yi” reitera a mensagem que Vernon já tinha transmitido, esclarecendo que pretendia explorar novos horizontes, criar um universo de arte musical absolutamente novo, pelo que, em linha com esta intenção, esta faixa surge ruidosa, ouvindo-se um vasculhar alusivo a um remexer, que representará precisamente o remexer das ferramentas de trabalho, o remexer da mente, o processo criativo em ebulição.
A segunda faixa prolonga esta intenção, arrastando as vozes contorcidas, muito maquinizadas, os sons deturpados e com interferências. Até surgir a clareza na voz de Justin, “living in a lonesome way, had me looking other ways”, no seguimento da referência aos seus tempos de isolamento que se querem aqui relembrados, com o propósito claro de marcar a inauguração de um processo de criação evolutivo que culmina hoje nesta metamorfose e reforma um tanto efervescente e eufórica.
O desassossego da alma de Justin continua a prevalecer, mas deixou de ser um desassossego receoso de questionamento existencial para passar a ser um desassossego desperto, compassado pelas emoções que deixaram de ser o “porquê” para passarem a ser “o quê”, aquilo que objetivamente são e que fazem parte do eu, repetidamente mencionado na faixa “iMi”, onde se ouve “I am, I am, I am, I am”.
No geral, os sons neste álbum não atingem uma harmonia e coerência lapidar, contrariamente ao que acontecia no álbum transato, 22, A Million, onde as sonoridades, embora disruptivas por natureza, se municiavam de sentido, em regime de reciprocidade. Talvez esta desorganização tenha o propósito maior de representar uma celebração intencionadamente aleatória e solta. Basta atentarmos no audiovisual da faixa “iMi”, protagonizado por uma bailarina com movimentos simultaneamente marcados e desprendidos, por vezes desnorteados, mas finalmente redescobertos numa dança mais jocosa e festiva, alinhada com as graciosas espirais da guitarra.
Justin surge com uma convicção expansiva e corajosa - grandemente manifestada em “We” - embora este trabalho se distancie de tudo o que já foi criado por si. Poderíamos pensar que a subversão do álbum 22, A Million, aparentemente mais diametralmente oposta do liricismo de For Emma, Forever Ago e de Bon Iver, Bon Iver, se afastava mais do posicionamento de Bon Iver, porém este álbum representa a verdadeira fissura criativa na obra da banda.
Em faixas como “We”, “Holyfieds” e “Jelmore”, a intenção é dificilmente captada, a letra é vaga. Há um vazio musical nestas faixas, preenchido por uma intermitência pulsar, com umas linhas mais agudas desenhadas pelos sintetizadores. Atrever-me-ia a designar estas faixas de experimentações, apenas.
E, imediatamente antes de nos vermos sucumbidos a um universo experimental, eis que surge “Hey, Ma”, introduzida pelo registo mais baixo de Justin, numa nostalgia frágil e refletiva, a partilha de uma intimidade pura e crua, não antes vista. As flutuações nesta música são sublimes. É aqui vertido um sentido de gratidão e segurança espiritual, “you’re back and forth with light”, por referência à mãe, num maturar de sentimento já previamente explorado na faixa “flume”, onde se ouve em jeito de ode “Sky is womb and she's the moon (…) I am my mother on the wall, with us all”. Todavia, a pulsação digital e o marco dos tambores apelam agora a uma consciencialização mais profunda.
“U (Man Like)” traz-nos o gospel e o conforto do piano que vai tentando prevalecer por entre ruídos esguios e imprecisos. Juntam-se aqui contribuições de múltiplos artistas, incluindo Bruce Hornsby e Jenn Wasner, cujo propósito parece mais ser o de celebrar parcerias e interações criativas do que construir uma obra marcante.
Em “Naeem”, o sentido crescente da música parece manifestar em 4 minutos a urgência em acolher emoções na sua plenitude, em partilhá-las: “I'm telling you I do feel ya”. “Naeem” é uma palavra árabe que significa conforto, tranquilidade, e isto, por si só, bastará para que se atinja o propósito e alcance maior desta faixa. “I cannot seem to carry at all”, prega-se, num grito de alívio e liberação.
Há faixas que ficam a meio-caminho do expectável, por não atingirem o potencial normal, como “Marion” e “Salem”. Mas o expectável não é necessariamente o certo. Há que fazer aqui o esforço de abstração e apreciar o produto musical como um todo, assim como a sua intenção. “Salem” faz-nos vislumbrar horizontes amplos e venturosos, e tem um potencial infindável. No limite, diria que poderia competir com “Holocene” ou “29 #Strafford APTS”, se tivesse sido explorada com outra vulnerabilidade. “Marion” é natural, orgânica, simplesmente apoiada na acústica da guitarra, sem ornamentos. Tanto uma faixa como outra representam a atenção plena e o controle sobre a capacidade de concentração nas experiências e sensações do presente.
Evidentemente, Justin Vernon saberia o que seria necessário para tocar a perfeição e atingir o esplendor com estas faixas. Não diria que reprimiu potencialidades, ao invés, terá habilmente dado sinais da sua genialidade, conciliando essa convicção com particularidades deliberadamente atípicas e sui generis que apelam a outro tipo de experiências sensoriais.
“Sh'Diah” introduz-se como um suspiro protetor e quente. Sente-se uma vulnerabilidade que nos traz um sentido de pertença e familiaridade tão grande que só poderá apelar a uma emoção genuína da parte dos ouvintes. Uma fragilidade crua que nos relembra as origens do artista e aquilo que o compõe. Vence-se aqui o saxofone numa dança flutuante.
Porém, diria que o expoente da genialidade é atingido em “Faith”. Esta faixa representa o despertar da alma, dos sentidos. É a conciliação improvável e desejada da guitarra com os sintetizadores, harmonizados com o falsete de Justin. E depois ecos de coragem: “Time to be brave”; suspiros de intimidade: “fold your hands into mine”. “I know it's lonely in the dark / And this year’s a visitor / And we have to know that faith declines / I am not all out of mine” configura indubitavelmente o laivo de esperança mais acertadamente oferecido por Justin, das mensagens mais bem conseguidas de sempre nos registos de Bon Iver.
A faixa final, “RABi”, será a mais desprovida de sentido e riqueza musical. Não há movimentação sonora, os sons são pouco ritmados, muito impercetíveis. Justin exprime-se aqui maioritariamente num tom grave que lhe é estranho. Não há complexidade. Talvez por se estar a referir ao grupo, e por isso queira parecer mais objetivo, mais corriqueiro e vulgar.
No geral, este álbum é marcado fortemente pela frieza dos sintetizadores, que por vezes faz sentir saudade dos acordes mais constantes e calorosos da guitarra. Todavia, no decorrer do álbum, a identidade de Justin Vernon - vertida em Bon Iver - continua registada e é estrategicamente relembrada, reforçando a convicção do dom celestial e sobrenatural que este artista possui. No final, será de aplaudir este trabalho revolucionário, o esforço de superação, de criação. E sobretudo há que reconhecer a beleza do processo de crescimento individual e relacional de Justin. O cuidado para com os seus pares, os seus parceiros. O sentido de comunidade a prevalecer sobre o individualismo. O resultado é, pois, ímpar e distinto... Como sempre!