Experiência verdadeiramente agridoce a escuta do novo disco dos Fear Factory. Trata-se de um álbum francamente bom e inspirado, que não acrescenta praticamente nada de novo, mas que se revela excecional na maneira como explora a inconfundível identidade sonora da banda. Por outras palavras, aquela mistura entre agressividade maquinal e uma melodia com algo de profundamente humano, que ainda hoje soa extremamente futurista e que os transformou numa das mais refrescantes propostas do metal dos anos 90.
Contudo, marca também a despedida do vocalista Burton C. Bell, sendo impossível não questionar como poderão sobreviver os Fear Factory sem um dos elementos mais distintivos do seu som, desprovidos da voz apaixonada, emotiva e surrealmente expressiva do seu icónico frontman. Burton adota um registo quase fantasmagórico neste disco; sentimo-lo, sublime como sempre, a alternar entre a brutalidade rasgada e uma voz limpa e elegante, mas tudo não passa de uma memória imortalizada de algo que não existe mais, como uma constante miragem. O facto de a sua performance ser extraordinariamente pujante (ouça-se aquele arrepiante berro no início de “Disruptor” e veja-se como o homem soa intenso, quase possesso) não só enfatiza a complexidade emocional desta obra, como faz pensar se Burton, bem no fundo, quis dar tudo o que tinha uma última vez, talvez por já sentir que esta seria a sua derradeira contribuição para o grupo que ajudou a fundar… Triste e, ao mesmo tempo, poético, se assim for.
Todavia, não é somente o ex-vocalista que aqui se destaca, pois Dino Cazares – guitarrista, membro fundador e o responsável pela gravação das linhas de baixo – continua a ser uma enorme e imparável força criativa, enchendo o disco de riffs colossais e pesados, mas sempre incrivelmente requintados. Tal como Burton, é alguém que entende a linguagem dos Fear Factory e que se assume como uma peça fundamental do seu puzzle sonoro, o que explica porque é que os álbuns sem ele gravados (Archetype, de 2004, e Transgression, de 2005) nunca conseguiram capturar totalmente a magia de outrora, ainda que ocasionalmente se aproximassem bastante dessa genialidade. Faltava Dino, da mesma forma que, daqui em diante, faltará Burton, quase como se o sucesso da fórmula dependesse sempre da presença da dupla (não descurando os restantes elementos, ainda assim, sobretudo Raymond Herrera e a sua demolidora bateria).
Questões sobre o futuro à parte, a verdade é que há imensa qualidade espalhada por esta coleção de dez músicas, a começar logo pela faixa de abertura. “Recode” inicia-se com samples que refletem a temática predileta do grupo – a relação entre o Homem e a inteligência artificial, bem como as consequências nefastas que daí podem surgir – e o tom dramático dessa introduçãoé espantosamente eficaz no modo como instala o mood perfeito para esta viagem sonora.
Musicalmente, o destaque vai claramente para a grandeza do refrão: melódico, deliciosamente orelhudo e inegavelmente triunfal, só dá vontade de voltar atrás para escutá-lo vezes sem conta e consumi-lo até o processo se tornar exaustivo. Segue-se a já referida “Disruptor” e aqui, caramba, há mesmo que afirmar: que malha irresistível!!! Imagine-se um cruzamento soberbo entre a “Edgecrusher” e a “Replica”, mas ao nível destes clássicos e com tudo para figurar no alinhamento dos mais influentes trabalhos da banda. É um sentimento magnífico, comovente, e que volta a emergir quando, no final, a possante “End of Line” esmaga a alma de quem a escuta. É outra malha que parece um hino perdido dos dias gloriosos, brutalíssima e dotada de esplêndidos riffs “nervosos” e implacáveis do mestre Cazares, assim como de uma prestação notável e suada do atual baterista Mike Heller (Malignancy/Raven). Enfim, composições estupendas, tão formidáveis que é mesmo de lamentar que os Fear Factory de hoje se encontrem tão descaracterizados e divididos, pois a capacidade para compor grandes canções não foi minimamente afetada pelos problemas internos e os processos legais que têm assolado o coletivo. Isso mais evidente se torna em “Purity” ou “Fuel Injected Suicide Machine”, que exibem um saudável equilíbrio entre peso e sensibilidade melódica de sabor (quase) pop e constituem mais dois pontos altos de um disco exemplarmente coeso, que em determinadas alturas chega mesmo a ser brilhante. No fundo, um álbum tão típico quanto atípico, familiar no som que apresenta mas único em tudo o resto. Não é um game changer, mas também não pode ser descrito como um renascimento criativo, até por já estar praticamente pronto desde 2017 e a sua edição ter sido somente atrasada pela pandemia e as infelizes batalhas judiciais. É antes uma obra que espelha uma incerteza desconcertante, não se sabendo bem se será o canto do cisne ou o começo de uma nova era.