O confinamento provocado pelo Covid-19 alterou de forma abrupta o nosso modo de viver. A grande maioria de quem agora lê este texto tem estado confinada ao possível conforto do seu lar, afastada da família, dos amigos, das lojas de discos. É indiscutível que tais restrições alteram o nosso ritmo e saúde mental, mas também são potenciadoras de uma melhor gestão de tempo, permitindo o consumo da literatura e dos álbuns que há muito andavam por ler/ouvir. Ora tudo isso mudou (pelo menos cá em casa) a 17 de abril, quando do nada e após oito anos, Fiona Apple lança cá para fora o seu novo álbum: Fetch the Bolt Cutters.
Neste novo trabalho, a compositora norte-americana rompe com todos os cânones da composição pop, e até com a sua própria sonoridade. O resultado: o seu álbum mais conceptual até à data, cheio de rudeza e crueza emocional. Fetch the Bolt Cutters não é o típico álbum que conta uma história que flui da primeira faixa até à última. Também não é o típico álbum cheio de boas canções em que podemos pegar e colocar na nossa playlist de favoritos. Trata-se de um álbum que, apesar de disruptivo e fã do caos, foi feito para funcionar como um conjunto, não se tratasse ele de uma espécie de convite às vivências e ao quotidiano de Apple. É a partir daqui que a trama adensa e começamos a constatar a imensidão da alma deste trabalho.
Comecemos pelo início: logo após The Idler Wheel..., Fiona começou a magicar um álbum inspirado na sua casa em Venice Beach; não na casa propriamente dita, mas por se tratar de um local de refúgio. Isola-se então na sua casa/estúdio e começa o processo de escrita e libertação de todas as suas frustrações, traumas e experiências. No entanto, as suas composições não transbordam raiva ou “ressabianço” (nem nós o esperávamos de si), pelo menos não liricamente. Pelo contrário, Bolt Cutters transmite uma mensagem de reconciliação e de emancipação. O Feminismo surge aqui, então, despido de demagogia, pela visão de uma mulher, sobre si e os que dela abusaram, independentemente do género. A transparência com que Apple nos dá a conhecer momentos e pessoas da sua vida transporta-nos para as suas próprias vivências, criando uma relação de empatia nunca antes ouvida entre um álbum e quem o escuta (será Shameika um nome real?). A porta da sua casa, e da sua vida, é tão amplamente aberta que até os seus cães nos dá a conhecer, não fossem estes parte integrante das sonoridades que ouvimos de fundo, e como tal, merecidamente creditados como backing vocals (?backing barks?; ?barking vocals?) no álbum.
Se tudo isto já parece incrível, é na sonoridade que Apple muda o paradigma e eleva o conceito de álbum caseiro a todo um outro nível. Desde logo o piano deixa de ser a estrela principal das suas músicas. Institucionaliza-se então o bombo, e imaginamos Fiona a marchar pela casa fora que nem um Zé Pereira em festa da terra. De facto, todo o álbum está cheio de percussão, explodindo e desaparecendo mediante os sussurros ou visceralidades de quem canta. Depois, temos o que havia lá por casa. E, neste aspecto, não se poupou na aleatoriedade e tudo se tornou um potencial instrumento musical: temos cadeiras, isqueiros, feijões, trelas, caixotes de lixo, depósitos de água, os adornos decorativos, e até o próprio chão da casa. Usar objetos do quotidiano não é algo propriamente inovador no que toca à composição e produção musical, mas a forma espontânea e a mestria aplicada na conjugação do todo são definitivamente o trunfo que coroa este álbum como um dos mais icónicos da sua geração.
Não fosse tudo isto suficiente para se estarem a babar com a apoteose da música, falta mencionar que, excecionando uma das faixas, Fetch the Bolt Cutters foi inteiramente composto por Fiona Apple (curiosamente, a única faixa creditada a Sebastian Steinberg e David Garza – os músicos que a acompanharam – é “Ladies”). Feitas as contas, não poderíamos esperar outra coisa de um exercício tão pessoal quanto este, assim como só podemos compreender os sucessivos adiamentos que Apple foi fazendo para editar o álbum. Não nos podemos esquecer que o mesmo começou a ser construído em 2015.
Em tempo de quarentena só podemos elevar as mãos ao céu em jeito de gratidão por tão enorme presente. Como dito anteriormente, Fetch theBolt Cutters é um convite ao quotidiano, à casa de Fiona Apple, e sem sairmos de casa, sem tirarmos os fones ou termos de desligar a aparelhagem, percorremos as divisões da artista e da pessoa. Se ainda não entraram, é favor de entrar.