Apesar de muitos encontrarem no grindcore um género que se tem mantido em modo primata por já muitos anos, atrevo-me a contestar, dizendo que este poderá muito bem ser um estilo que sempre se mostrou expansivo, abrangente e progressivamente amplo. Não bastando exemplos como os de hoje em dia, como os defuntos The Red Chord, Misery Index, Cephalic Carnage ou até mesmo Pig Destroyer, haverá também soluções no passado, com Napalm Death, Brutal Truth, Assuck e muito mais. Mesmo com a crítica político-social sempre em foco central, o sonoro sempre foi altamente mutável na sua própria dinâmica. Na verdade, quando nos cruzam bandas pela cabeça que possam muito bem representar essa mesma ideia de consistência cruzada com criatividade e vigoroso, os canadianos Fuck the Facts são uma paragem definitivamente obrigatória. Oriundos de Ottawa e fundados pelo atual guitarrista Topon Das, a ética DIY foi não só fulcral como identitária à matriz da própria banda. Mesmo já havendo trabalhado com uma editora de renome mundial como a Relapse, FTF sempre se sentiram mais em casa a realizar o seu próprio trabalho.
O seu sonoro – sempre envolvente e cru – demarca-se num estado constante de mutação e variação. Dito isto, é mais do que evidente que os canadianos nunca lançaram o mesmo disco duas vezes. Recorrendo a elementos do jazz, do crust-punk ao death metal do início dos anos 90, ao hardcore metálico do final dos anos 90, é notória a necessidade que a banda tem em “classificar-se” como grindcore bastardizado. Mesmo que a banda já estivesse bem encaminhada no seu sexto disco quando a vocalista Mel Mongeon chegou, é inegável que a presença desta marcou um ponto de viragem crucial no plano sonoro e visual. A promover um estilo vocal que é simultaneamente único, cruel e emotivo, é realmente difícil referenciar outra voz para associar à sua.
Cinco anos após o inventivo e revolucionário Desire Will Rot, e vinte após o seu primeiríssimo disco, a banda agora formada por Mel, Topon e Mathieu chega a 2020 com o seu derradeiro décimo disco do catálogo – e muito provavelmente o mais importante da sua carreira. Pleine Noirceur, produzido, gravado e lançado pelos próprios, acumula uma portentosa descarga de energia ao longo de cerca de doze faixas em quarenta e tal minutos. A trazer ainda mais melodia do que é habitual, a escrita surge a fundir a robustez do crust e grind com as brilhantes linhas de guitarra em grande plano. Combinações que brindam as transições aprumadas e bem maturadas com intervenções de blast beat avassaladoras e passagens a arrastar que empurram qualquer um para instaurar caos no seu mais próximo vizinho. Essa mesma expansão melódica denota-se em grande nível no single de nome próprio, que imediatamente leva às enormíssimas texturas de uns Fall of Efrafa sob épico assalto por parte de uns Tragedy.
A primeira faixa só por si, “Doubt, Fear, Neglect”, inspira o melhor dos dois mundos com as guitarras brilhantes a iluminar o espectro de uns Krallice a moldar à progressão em caos de outros Converge. “Sans Lumiere” surge a canalizar d-beat entre flancos de alta distorção e postura, com a “Everything I Love Is Ending” a trazer uma batida de hardcore que rapidamente leva qualquer um a surfar a multidão de punho cerrado. A este ponto já pouco se consegue resistir ao perfeito estalo da tarola e à tonalidade acertadíssima das cordas. “A Dying Light” resume na perfeição a dualidade que Pleine Noirceur tem vindo a trazer, emoldurando versos de uma beleza tremenda, sem poupar qualquer peso de força na sua entrega. As duas faixas que encerram o disco, “An Ending” e “_cide”, carregam ambas um tremendo peso emocional, que dá assim por terminado uma catarse que promete permanecer na companhia do ouvinte horas após a sua despedida. Depois do mergulho à escuridão total, é impossível ignorar a ideia de que este poderá muito bem ser o melhor disco da banda até hoje. Tendo em conta que foi feito de forma independente, após a maior pausa entre lançamentos e em simultâneo com as vidas pessoais dos seus membros, Pleine Noirceur representa muito mais do que só um álbum. É uma força superior.