É verdade que este ano já foram lançados vários álbuns muito bons, muitos deles com um enorme e compreensível sucesso. No entanto, muitas vezes é necessário escavar e procurar noutros sítios para nos apercebermos de que é também naqueles que passaram despercebidos que se encontram as mais belas melodias. Hoje, na internet, plataformas como o Bandcamp pulsam repletas de sons inovadores e criativos, e é nesse tipo de comunidades virtuais que atualmente se dá a génese de muitos dos ídolos musicais do nosso futuro. Um deles é na minha opinião Jerry Paper, um multi-instrumentista de Los Angeles baseado em Brooklyn com uma certa afinidade pelo surreal, que lançou o seu último álbum Toon Time Raw! em junho deste ano. É preciso dizer que Paper tem um enorme número de fãs na internet que já se curvaram em reconhecimento do seu talento e este é já o seu nono álbum em quatro anos, composto em colaboração com a famosa banda eletrónica canadiana BadBadNotGood (ou BADBADNOTGOOD ou BBNG). Tal como todos os álbuns anteriores foi lançado no Bandcamp e generosamente disponibilizado, de forma a que todos o pudéssemos ouvir gratuitamente.
Toon Time Raw! é um álbum belíssimo, tanto musical como liricamente. Numa série de fábulas inteligentes, sensíveis e simultaneamente cómicas e tristes, conta-nos as histórias dos problemas existenciais das vidas de personagens de desenhos animados. No seu tom grave e sonhador, Paper é o narrador omnipotente das várias histórias de um mundo imaginário onde as dificuldades desses seres acabam por ser surpreendentemente semelhantes às nossas. Temos elefantes de saltos-altos, um sapo desiludido com a vida, um porquinho em speed, e vários outros hilariantes personagens que habitam um mundo que, com um humor extremamente perspicaz, acaba por espelhar o nosso próprio. Assim, acabamos por nos identificar com as personagens de Paper e por compreender que o mundo surreal onde eles vivem não é assim tão diferente do nosso.
Musicalmente é notável a diferença entre este álbum de Jerry Paper e os anteriores, ainda que haja algo de inexplicavelmente inconfundível em todos os trabalhos deste artista. Desta vez afasta-se um pouco do género de pop eletrónico que o tornou conhecido na internet e explora sonoridades mais próximas do funk e do jazz, sempre complementadas pelos peculiares sons do teclado MIDI que caracterizam a sua música.
Assim surge um álbum que é de certa forma inclassificável. Ao longo de quatorze faixas, diferentes géneros vão sendo explorados, desde estranhas baladas eletrónicas a músicas de amor complementadas por bonitos solos de saxofone, de ritmos jazz e funk vindos de outro planeta a outras cujo o género tem um nome que ainda não foi inventado.
É algo de muito interessante o mundo de Paper, está repleto de romances e sentimentos estranhos e contraditórios próprios da condição humana (ou animada). Os seus álbuns abrem a porta para um universo surrealmente belo, atmosférico e muito mais complexo do que pode parecer à primeira vista, sendo que as suas músicas não só exigem ser ouvidas mais do que uma vez como dão uma grande vontade de o fazer. Na música e, principalmente, na poesia de Paper parece encontrar-se uma fusão profundamente delicada entre as fantasias de uma criança, os pensamentos de um adulto e as reflexões de um filósofo.
Ao ouvir Jerry Paper, neste ou em qualquer outro álbum, apercebemo-nos de que estamos numa maravilhosa era de ouro da experimentação musical. Sentimo-nos pequenos, pois damos conta de que ainda não ouvimos nada, que há ainda milhares de géneros musicais por inventar e que apesar de toda a sua história a Música é ainda uma criança e talvez nunca venha a deixar de o ser. Sentimo-nos pequenos neste enorme universo musical em expansão, mas isso dá-nos esperança: apesar de sabermos que ainda há incontáveis acontecimentos inimaginavelmente feios e atrozes no nosso futuro, há também uma inimaginável quantidade de beleza que aí vem e isso é profundamente importante se queremos manter-nos mentalmente sãos no caos que o nosso mundo e o seu futuro representam.