O jazz entrou na minha vida há aproximadamente dois anos, assim que entrei no conservatório. O lema deste género musical é extremamente modesto, e cito o baterista Max Roach quando digo que “O jazz é uma forma musical muito democrática, provém de uma experiência comunal. Pegamos nos nossos respetivos instrumentos e coletivamente criamos algo dotado de beleza”. Os processos de improvisação, de espontânea criatividade, de espiritualismo sonoro e sobretudo todo o altruísmo que corre nas veias da estrutura musical e filosófica “jazzística” sempre me trouxe imediatamente à mente um dos mais importantes ensinamentos que o meu pai em mim instruiu: “Sem humildade não chegamos a lado nenhum”. Toda a filosofia envolvente deste género musical, que muitos hoje julgam estar morto, fortaleceu e reforçou a humildade que há em mim, mesmo nos momentos em que eu, eu próprio e a minha pessoa, pensávamos que esta tinha desvanecido.
São pessoas como Kamasi Washington que me fazem acreditar no progresso musical presente e futuro, e sobretudo num mundo melhor, repleto de pessoas autênticas que genuinamente adoram aquilo que fazem. No caso de Washington, a música é aquilo que ele vive e respira. Mas quem é, afinal de contas, Kamasi Washington? Digamos que até aqui sempre se escondeu nas cortinas do palco. Kamasi é o responsável pelos instrumentos de sopro que me contagiaram instantaneamente nos discos de Flying Lotus (o fundador da editora para a qual Kamasi presta os seus serviços, a Brainfeeder Records), como em Cosmogramma e aquele que considerei o apogeu musical do ano passado, You’re Dead!. Washington é também o autor dos toques divinos de saxofone que me fizeram tremelicar até ao coração e à espinha em To Pimp a Butterfly, o novo disco e clássico instantâneo do rapper Kendrick Lamar. 2015 chegou e com ele vem a ascendência de Kamasi Washington: é ele a estrela agora.
Com The Epic, Kamasi Washington proclamou uma espécie de ressurgimento das cinzas ao jazz; uma garantia de que este não está morto, mas sim mais vivo do que nunca. Para tal, aglomerou uma orquestra de 32 músicos de excelência a um coro de 20 elementos e à sua “big band” de 10 instrumentistas, denominada “The Next Step” (ou “West Coast Get Down”), constituída pelo próprio Kamasi, por dois bateristas, dois baixistas (incluindo o infame Thundercat), dois teclistas, um trompetista, um trombonista e uma vocalista feminina (Patrice Quinn, que presta os seus dotes vocais a temas como “The Rhythm Changes” e “Cherokee”). O curioso é que a maioria desta malta já toca junta há vinte anos e isso é certamente um destaque em The Epic: uma personificação musical daquilo que é o amor, a amizade, a espiritualidade e sobretudo o som de seres humanos a divertirem-se em comunhão. Com este trabalho, Kamasi Washington empreendeu um álbum que pega no jazz antigo, no jazz moderno e no jazz futurista e os mistura numa salada russa de géneros musicais como o funk, o psicadélico, a música clássica, o gospel e o avant-garde, consequentemente criando algo que não partilha um terreno comum com qualquer outro trabalho precedente a este. Tudo isto está incluído nas três horas que constituem a mais autêntica odisseia musical do século XXI. Seria de esperar que o responsável por tal empreendimento, que pode muito bem ser o ponto de viragem do jazz, se revelasse como uma pessoa arrogante. Felizmente, não é esse o caso: deixei uma palavra positiva ao saxofonista de 32 anos no Twitter e este respondeu com um agradecimento entusiasta.
A música em The Epic encontra inspiração em figuras como John Coltrane, Horace Tapscott, Pharaoh Sanders e em culturas sonoras abrangentes como a música Afro-Cubana e o “soul” espiritual. O som de Kamasi Washington traz à memória um Coltrane do período mais tardio da sua carreira, exceto que o tom de Kamasi consegue ser ainda mais feroz quando explode abruptamente e ainda mais tenro nos momentos de maior subtileza e cuidado. Sinceramente, é difícil descrever tudo aquilo que vai no fenomenal desempenho do “band-leader”, dado que este é tão autêntico como é sobrenatural, e ainda assim consegue encontrar um equilíbrio harmonioso entre o estonteante virtuosismo e a trépida humanidade do ser musical.
As três horas que constituem The Epic estão divididas em três discos que assumem posições fortes por si só. Há a possibilidade de visitar três cantos diferentes do mundo de Kamasi Washington em ocasiões distintas, mas também a de dar uma volta inteira a um magnânimo planeta de uma só vez. Para esmiuçar The Epic ao mais minúsculo detalhe eu provavelmente precisaria de escrever um livro com um lápis na mão e uma lupa na outra. Resumidamente, o primeiro disco é definitivamente aquele com mais raízes provenientes do jazz, apresentando-se quase como que a abertura para um espetáculo teatral sem quaisquer falhas que não aquelas que caracterizam o ser humano, que contudo acabam por se tornar em qualidades. A energia é pintada a tela cheia com “Change of the Guard” e “Final Thought”, as barreiras da pura emoção são trespassadas com “Askim” e o erotismo ganha todo um novo significado com “Isabelle” (que inclui um órgão que eu posso garantir que foi roubado de uma igreja em Harlem) e “The Rhythm Changes”, sendo todas estas facetas sintetizadas com “The Next Step”.
O segundo disco é um de extremos: adota uma maior sensibilidade pop em temas como “Leroy and Lanisha”, mostra impossível e exuberante beleza estética na fonte de imparáveis choros que é “Seven Prayers” e é o palco de várias explosões nucleares para as quais o universo jamais estará preparado, contidas em temas como o frenético “Miss Understandings” e o catastrófico “The Magnificent 7”. Finalmente, o terceiro disco mistura todos os elementos que o precederam: vários subgéneros de jazz como o post-bop, o bebop, o spiritual jazz e o avant-garde, cujos se aglomeram com influências de tributos à música clássica (em “Clair de Lune” temos uma rendição jazz do clássico de Claude Debussy do mesmo nome), à música étnica (“Re Run” faz-nos viajar até África mais rápido do que qualquer meio de transporte altamente veloz) e até mesmo um tributo ao líder civil Malcolm X (em “Malcolm’s Theme”), em forma de um rico e encantador tema fortemente influenciado por música gospel.
Gostaria de esmiuçar mais o literalmente épico disco de estreia de Kamasi Washington, mas não existem destaques. Honestamente, Kamasi Washington conseguiu criar uma coletânea de três discos que não apresentam nenhum tema abaixo do genial. A comunicação musical entre todos os elementos facilmente iguala a de uns Jazz Messengers, e com esta musicalidade vasta coexiste um transcendente sentido de dinamismo meticuloso que acompanha as composições brilhantes de Kamasi. Todos os solos apresentados em The Epic são pura e simplesmente brilhantes. Todos os segundos da obra-prima moderna que Washington nos concedeu são tão exorbitantes que conseguem fazer com que três horas passem a correr como que meia-hora. The Epic lembra-me do porquê de eu gostar tanto desta vasta e soberba arte que é a música, inspira-me a ser uma pessoa melhor e dá-me a maior vontade de ir imediatamente fazer música em conjunto com os meus amigos e tocar para uma plateia, seja ela pequena ou enorme. Estou em pleno êxtase e com todo o corpo repleto de arrepios só de pensar na sensação que foi desvendar o baú de surpresas que é The Epic pela primeira vez. Retenho a experiência, dou graças pelo milagre. Meus amigos, o universo jamais estará preparado, mas eis que nos foi concedido o disco de jazz mais colossal de todos os tempos.