Não deixa de ser curioso como Kelly Lee Owens, outrora auxiliar de enfermagem e há muito fascinada pela ligação entre a música e o modo como esta consegue influenciar a saúde mental de quem a ouve, criou, com este disco, um dos mais eficazes “remédios” para a cura dos males que nos atormentam (e que também a consumiam).
A fórmula do álbum de estreia, onde climas introspetivos e atmosferas dançáveis se abraçavam e harmoniosamente coexistiam, permanece inalterada, mas agora tudo soa ainda mais grandioso, mais polido e fluido, como se estivéssemos a assistir à triunfal epifania de uma jovem artista em busca da melhor versão de si própria. Desde a surpreendente sensibilidade pop do single “On” até à leve inspiração R&B de um tema como “Re-Wild” (com um refrão deliciosamente orelhudo mas emocionalmente arrebatador, algo que acontece frequentemente ao longo do disco), passando pelo groove techno alienígena, mas ainda assim estranhamente humano, de uma música como “Melt”, o que aqui temos é uma viagem sonora diversa mas coesa, que exige algumas escutas atentas, com o estado de espírito certo, para que nos apercebamos de todo o seu encanto e nos deixemos envolver nesta infinita teia de sedução.
Não se trata de um disco necessariamente imediato, será seguro afirmá-lo, mas quanto mais lhe damos atenção, quanto mais observamos as várias facetas da sua delicada personalidade, mais intensamente nos apaixonamos por ele e mais tempo desejamos passar na sua companhia. É precisamente nesse período de íntima descoberta, diga-se mesmo da mais apaixonada lua-de-mel, que nos deixamos encantar pelo manto sublime de minimalismo meditativo que constitui a colaboração com John Cale em “Corner of My Sky”, pelo tom simultaneamente enérgico e espiritual de “Jeanette” (tributo à falecida avó de Kelly e maravilhosa banda sonora da discoteca das nossas emoções) ou pelas refrescantes influências de trip hop/downtempo cuidadosamente plantadas ao longo do disco (a mais evidente será mesmo na faixa “Flow”, sendo que tais referências não são assim tão inesperadas quando nos lembramos que Kelly já trabalhou em lojas de discos e é uma orgulhosa melómana). Todavia, no que diz respeito a estes pequenos pormenores, nada supera o arrepio que sentimos ao escutar a sua voz ecoar em “Night”, como se a estivéssemos a ouvir num túnel. “Alone” é a palavra aí enfatizada e que completa uma frase iniciada por “it feels so good to be”, porque este é, sem dúvida alguma, um álbum que nasceu da mais pura reflexão; afinal, a vida não está fácil, a pandemia que ninguém pediu decidiu instalar-se e com isso também a indústria musical sofreu (a própria edição deste disco estava inicialmente prevista para o mês de Maio), sendo que Kelly teve igualmente de enfrentar a já referida perda de um ente querido e o fim de uma relação amorosa.
No entanto, foi a partir desse sentimento de dor, e da batalha para a superar, que a compositora e produtora galesa, atualmente a residir em Londres, emergiu vitoriosa. Obra pessoal a vários níveis (até na inclusão de uma versão instrumental, logo no início, de “Arpeggi” dos Radiohead, banda da qual é fã assumida), Inner Song vem realmente do interior, é visceral e genuíno, é o documento sonoro de uma talentosa artista a abrir as portas da sua alma para as deixar acessíveis ao mundo que a rodeia; há melancolia e trauma psicológico, mas há também superação e perseverança, há uma sessão de terapia em formato de música que se revela extraordinariamente catártica – para a autora e para qualquer ouvinte que se encontre num estado depressivo e procure algo reconfortante, pois, no fundo, toda esta obra é uma carta de amor à música e às suas capacidades terapêuticas, um convite para que unamos os dois mundos e permitamos que a nossa luz brilhe sem ser apagada pela escuridão de terceiros.
Chegando ao fim da audição voltamos ao álbum anterior, lançado em 2017, e percebemos, ao comparar os dois, que estamos perante uma das mais entusiasmantes e consistentes “arquitetas” sonoras dos dias de hoje, alguém capaz de adicionar algo a partir do que antes construiu, expandindo os seus horizontes sem perder o que a torna única. Inner Song merece ser futuramente recordado como o momento em que Kelly Lee Owens encontrou verdadeiramente a sua voz, usando-a para conceber um dos mais belos, viciantes e transcendentais discos de 2020.