Não precisamos de grandes introduções. K-Dot para quem já o seguia desde uma fase exploratória e ainda por refinar, King Kunta para quem ainda segura To Pimp A Butterfly no mais alto dos pedestais do rap contemporâneo e Kung Fu Kenny para quem se deixou cair nas tentações do esmagador sucesso comercial de DAMN. A persona pode mudar a cada lançamento, mas os espólios revertem unicamente para uma das mentes mais brilhantes a sair de Compton. Kendrick Lamar é um homem de muitos pseudónimos, cada qual como um capítulo na autobiografia que gradualmente se vai ditando. No virar da página encontramos agora oklama, a personalidade associada à montanha russa de emoções que é Mr. Morale & the Big Steppers.
Não o parecendo, oklama não se fez fruto do acaso. O peso carregado pela congregação das palavras “okla” e “ma”, traduzidas para algo como “my people”, vira as atenções para uma mensagem importante, mensagem esta dirigida aos seus - amigos, fãs, críticos e, talvez acima de tudo, à sua família e esposa. O estatuto que Kendrick veio adquirindo ao longo da sua carreira como uma espécie de porta-voz da cultura afro-americana e toda a problemática que ainda a rodeia volta aqui a ser renovado, ainda que esse estatuto elevado não seja de todo ambicionado pelo próprio. No entanto, o quinto álbum de estúdio revela também toda uma narrativa extremamente pessoal e abre de par em par uma série de janelas para a psique de um indivíduo abalado por vícios, tentações e qualidades de caráter pejorativas que já há longos anos carecem de tratamento. Mr. Morale & the Big Steppers desenvolve-se, nesse sentido, como um conjunto de sessões terapêuticas que ambicionam erradicar o mal pela raíz. Para que tal sucedesse, muito trabalho havia a ser feito, não fosse o produto de toda esta busca profunda um álbum duplo.
Antes que se rebaixe a agulha que fará soar a primeira das 18 faixas que compõem a mais recente proposta do rapper, produtor e compositor, basta olhar de relance para a tracklist e respetivas features e creditações para nos apercebermos do quanto talento está aqui reunido. A contar com trabalho de produção de The Alchemist, Baby Keem e Pharrell Williams e contribuições vocais de Ghostface Killah, Beth Gibbons (Portishead), Summer Walker e Kodak Black, não se esperava nada menos que uma série de performances multifacetadas e versáteis e composições musicais a alternar entre o perigosamente catchy, o efusivamente tenso e o obrigatoriamente dançável.
Se no primeiro disco Kendrick vai à procura dos defeitos e delitos que tem constituído um impasse ao seu crescimento pessoal, o segundo conforma-se com o devido processo de cura. E no que toca à primeira fase do projeto, não se medem esforços nem se deixam palavras por dizer. Desde problemas de infidelidade que posteriormente criam propensão para a existência de relações tóxicas, até ao saviour complex que se tem vindo a desenvolver à volta de Kendrick e outros artistas na cena de hip-hop norte-americano, até a um estudo sobre as raízes da masculinidade tóxica costumária no ambiente em que cresceu e em como isso gera uma cultura de opressão de sentimentos e apatia pelo próximo, a abordagem utilizada para enxergar a temática é a mais simples e eficiente de todas: pôr o dedo na ferida, custe o que custar.
Chegamos ao segundo disco e a mentalidade já se demonstra outra. Avanços importantes foram feitos, o ego e a consciência parecem finalmente desenlaçarem-se, e aparenta-se a aproximação de um ciclo de cura que repõe anos de um caráter faltoso. As perspetivas parecem outras, bem mais maturas e sábias por sinal. À medida que Kendrick começa a perceber que não pode agradar a toda a gente, a postura de “messias” acaba por desvanecer. A moralidade, os comportamentos, os costumes e as peripécias de toda uma comunidade não podem ser mudados ou questionados por um único homem, menos ainda por um homem em necessidade de se salvar a si mesmo.
O livro fecha numa nota de arrependimento profunda quanto aos seus vícios e comportamentos passados, esses mesmos que foram tanto um inferno pessoal para Kendrick como ainda o são para toda uma geração de homens que nascem no berço de ideologias sexistas, egotistas e sem escrúpulos. Sem dúvida, Mr. Morale & the Big Steppers não será o álbum pelo qual tantos ansiavam. Não é um magnum opus intocável e inatingível, mas o preciso oposto. É uma declaração sentida de que oklama é apenas um mero homem, humano tanto nas suas vulnerabilidades como na sua propensão ao erro. Que cada um tenha as suas prioridades é mais que justo, e, de momento, as de Kendrick Lamar centram-se no seu mundo pessoal, esse que se encontra agora mesmo em reconstrução.