Não será exagero nenhum afirmar que Marilyn Manson é um dos artistas mais fascinantes da sua geração, alguém cuja arte e imagem sempre conseguiram despertar sentimentos de admiração e revolta em doses iguais de intensidade desenfreada. Ícone de uma geração desencantada para muitos e símbolo máximo de uma perigosa decadência moral para outros, o carismático performer cuja irreverência frequentemente abraçava a iconoclastia (as bíblias queimadas nos concertos, por exemplo) e que viu a sua música ser usada contra ele após o massacre de Columbine é responsável por alguns dos mais brilhantes discos das últimas três décadas; desde o surrealmente violento niilismo de Antichrist Superstar, que ainda hoje simultaneamente encanta e intimida, até à sedução bizarra do majestoso Mechanical Animals, passando pela implacável sátira da atual sociedade americana, idealizada como declaração de guerra contra a mesma, presente em Holy Wood (In the Shadow of the Valley of Death), cada álbum funcionava como uma reação ao anterior, como se fossem peças inseparáveis de um complexo e delicado puzzle sonoro (os três discos mencionados formam até uma trilogia conceptual apresentada de forma cronologicamente invertida, pelo que existe efetivamente uma ligação entre eles).
Nem tudo foi perfeito, no entanto, e pelo meio surgiram trabalhos menos eficazes na tarefa de manter viva a chama dos anteriores (The High End of Low, de 2009, e Born Villain, de 2012, são alguns dos capítulos menos inspirados de uma carreira repleta de momentos altos), mas depois chegou o impressionante The Pale Emperor, em 2015, e Manson pareceu entrar num súbito período de renascimento criativo que desafiava a ideia de que os seus dias de glória já nada mais eram do que recordações de uma época distante. Continuando essa renovada onda de inspiração vem We Are Chaos, o sucessor do sólido Heaven Upside Down e possivelmente o melhor disco do cantor e compositor americano em praticamente duas décadas – em muitos aspetos, desde os tempos do impetuoso Holy Wood que não se via o controverso rocker tão magnífico na exibição da melhor versão de si próprio, conseguindo atingir grandeza artística sem estar preso às correntes do passado. Na verdade, se há algo que este disco se recusa a ser é revivalista, banhando-se antes nas águas cristalinas da inovação (no universo específico de Manson, claro está) para soar o mais refrescante e excitante possível.
É precisamente essa busca pela reinvenção, essa vontade de explorar território desconhecido para o transformar em algo inconfundivelmente seu, que faz de We Are Chaos uma obra tão dinâmica, tão diversa e, sobretudo, tão aprazível – para o ouvinte e para o autor. Sente-se um claro entusiasmo da parte de Manson no modo como protagoniza uma performance apaixonada, emotiva e extremamente confiante, postura que pode ser explicada pela relação saudável que desenvolveu com o produtor Shooter Jennings (filho das lendas do country Waylon Jennings e Jessi Colter), com quem se uniu para a criação de um álbum mais acessível e “humano” que muitos dos seus antecessores, mas que não deixa de ser pujante, ocasionalmente macabro e deliciosamente perturbador – por outras palavras, não deixa de soar a Marilyn Manson.
A colaboração com Jennings, que trata aqui de uma boa parte da instrumentação e também assume o papel de co-compositor, constitui, assim, um daqueles casos inacreditáveis onde os opostos realmente se atraem, onde as sensibilidades completamente distintas destes músicos se juntam para oferecer o melhor de dois mundos inegavelmente diferentes, mas aparentemente compatíveis. Ouça-se o tema-título, que pode muito bem ser descrito como a pop típica dos Beatles adaptada à voz e atmosfera de Manson, ou canções como “Paint You With My Love” e “Half-Way & One Step Forward”, temperadas com pianos sumptuosos e atmosferas tão orelhudas quanto épicas, para perceber em que ponto o emblemático músico se encontra neste momento. Contudo, o álbum nunca assume uma natureza excessivamente comercial, instantânea ou segura, pois mesmo as músicas mais melódicas (e atenção que continua a haver peso, basta escutar composições como a inquietante e viciante “Infinite Darkness”, a fazer lembrar hinos como “Disposable Teens” ou “President Dead”) têm um lado visceral, uma certa violência emocional que mostra como Manson não perdeu a garra – muito pelo contrário, o berro poderosíssimo, quase agonizante, na parte final de “Paint You With My love” é absolutamente arrepiante, dá vontade de voltar atrás para saborear aquele manifesto de paixão que tanto destrói o corpo como o purifica, é o som a conduzir à catarse.
Curiosamente, apesar de o disco evitar ser um espelho do que foi feito antigamente, acaba por recordar frequentemente Mechanical Animals, não só devido a algumas semelhanças musicais (as referências ao legado do ídolo David Bowie em “Don't Chase the Dead”, por exemplo), que surgem repentinamente como flashbacks de sensações outrora vividas, mas também pela forma como Manson se serve de uma espantosa elegância sonora para alcançar as mais puras e cruas emoções, sobretudo no campo das baladas explosivas; as duas faixas finais, “Solve Coagula” e “Broken Needle”, parecem partilhar o mesmo sentimento devastador, que mal consegue ser contido de tão forte e ardente que é, de clássicos como “The Speed of Pain” ou “Coma White”, como se a força do passado também alimentasse o presente. Ainda assim, We Are Chaos deverá ser visto como um disco do momento, um documento da habilidade de um artista em se reinventar – como tem sido hábito mesmo nos últimos anos, veja-se as tendências blues rock que definiram The Pale Emperor, ainda ligeiramente visíveis neste registo – quando já nada o obrigava a tal, e da sua capacidade em assinar um álbum verdadeiramente memorável e requintado, tanto a nível musical como lírico (as letras são das mais inteligentes e introspetivas que já escreveu) aos 51 anos.