Hermitage não nasceu para ser uma obra consensual apreciada por todos os seguidores dos Moonspell, mas constitui, sem dúvida alguma, um dos álbuns mais significativos, atuais e ambiciosos que a banda alguma vez lançou – prova irrefutável de uma extraordinária capacidade de reinvenção que desde cedo se tornou num dos principais traços da sua personalidade artística. Trata-se, em primeiro lugar, do primeiro disco gravado com a participação de Hugo Ribeiro, o mais recente elemento a integrar a família Moonspell após a saída inesperada (para o público, pelo menos) do baterista Mike Gaspar – uma mudança profunda que deixou Fernando Ribeiro e Pedro Paixão como os únicos membros presentes desde os primórdios da banda. É um cenário particularmente delicado, um que passa a ideia de um grupo fragmentado e sem rumo concreto, deambulando pelas ruas da amargura à procura de dias luminosos; contudo, se é indiscutível que os Moonspell atravessam uma etapa desafiante no seu percurso de quase três décadas – o abandono de um companheiro de armas ao lado do qual orgulhosamente combateram, a pandemia que reduziu drasticamente as oportunidades de tocar ao vivo –, é igualmente verdade que o nível de frescura e honestidade emocional que daqui emana revela-se simplesmente magnífico.
Hermitage não soa a nada que o coletivo da Brandoa tenha alguma vez criado, mas o espírito de inovação e reinvenção que o carateriza acaba por evocar, curiosamente, a magia de trabalhos de outrora. É o caso de Sin/Pecado, editado no rescaldo do período conturbado que foi a despedida amarga de Ares, baixista e cofundador, e que viu o quinteto desbravar caminhos sonoros que muitos na altura repudiaram – um exemplo impressionante de como a história tem, muitas vezes, uma natureza cíclica e se repete como um loop temporal. A própria atmosfera do disco é contemplativa, negra e melódica, exatamente como em Sin/Pecado (aliás, a “velhinha” e majestosa “Abysmo” quase que podia fazer parte deste alinhamento), mas as semelhanças param aí, nessa breve recordação de uma herança à qual os Moonspell se recusam a ficar presos. Sente-se o esforço que fizeram para “ignorar” o legado que construíram ao longo dos anos, mas sem eliminarem a base da sua identidade; o resultado? Um mergulho livre e destemido numa sonoridade de feeling prog, que vai buscar muita da sua inspiração à era clássica dos Pink Floyd. A lendária banda britânica está longe, no entanto, de ser a única influência visível, pois também se vislumbra um sentimento Depeche Mode (tal e qual como na supracitada obra de 1998, ou até em Extinct, de 2015 – não é fascinante como o passado se reflete no presente?) aqui e acolá, como em “The Greater Good”, ou mesmo uma atmosfera Bathory da era Twilight of the Gods, bem evidente no vigoroso tema título.
Para lá desse leque de inspirações, o que mais sobressai é a forma como o álbum não é, de todo, imediato; na verdade, à superfície, parece estar desprovido daquela força típica dos Moonspell, e mesmo da acentuada teatralidade que há muito que os distingue, mas a paixão continua lá, a chama não desapareceu, apenas arde a um ritmo diferente. Hermitage é um álbum que se vai revelando à medida que vamos descobrindo e convivendo com os seus dez temas, um álbum que troca muita da agressividade de lançamentos anteriores (Memorial, por exemplo) por uma maior maturidade emocional, banhando-se numa lucidez deliciosamente refrescante que lhe confere ainda mais poder e grandeza. Muito do seu encanto parece soltar-se quando o escutamos de uma ponta à outra, pois cada tema flui de forma sublime, como se o disco fosse uma peça contínua, cada canção uma cena específica de um filme que lentamente se vai desenrolando – há essa sensação (extraordinariamente envolvente, há que dizer) de uma narrativa coerente a guiar a “viagem” destas canções.
Enfim, em poucas ocasiões soaram os Moonspell tão soltos – sobretudo o guitarrista Ricardo Amorim. Claramente num ponto elevado da sua criatividade enquanto instrumentista, debita riffs ora ferozes (ouça-se aquele “ataque” de guitarra a meio do instrumental “Solitarian”), ora serenos e requintados, assim como bons solos cheios de garra e emoção – os de “All or Nothing”, por exemplo, são maravilhosos e remetem para o universo de David Gilmour no mítico Animals. Todavia, não há como negar que os outros membros também se fazem ouvir: Pedro Paixão, arquiteto musical do álbum juntamente com Ricardo, tempera as composições de forma magistral e tem na melodia sedutora de “Entitlement” ou nos ambientes etéreos mas soturnos de “City Quitter” dois dos mais memoráveis momentos da sua carreira, ao passo que o “jovem” Hugo, mesmo não possuindo a pujança e o carisma de Mike, é mais técnico e forma uma sólida secção rítmica com o baixista Aires Pereira, conseguindo ainda complementar e enaltecer as músicas.
Já Fernando Ribeiro permanece o poeta do grupo, refletindo sobre ermitas incapazes de suportar as pressões da sociedade moderna, sobre o mundo decadente, confuso e taciturno dos últimos anos, aprofundando assim um conceito que já alimentava desde 2017 e que agora, em plena época pandémica, atinge todo um novo significado – o distanciamento social como realidade normalizada da civilização contemporânea. Hermitage é um álbum que espelha, de forma penosa mas certeira, o atual clima social – neste aspeto relembrando o modo como The Butterfly Effect, de 1999, ilustrava o espírito caótico que se gerou em torno do Y2K –, e deverá ser visto como um dos documentos mais importantes destes dias incertos. Muitos detestarão, ou não compreenderão, a sua ousada direção musical, mas esta é a proposta certa para a altura certa – um marcante registo da época do desassossego.