We need to talk about Myrkur. Não há memória, nos últimos anos, de uma artista dentro da comunidade metálica que tenha polarizado tanto as opiniões. Nem mesmo os Deafheaven, com o seu black metal sorridente (que ainda assim enchem salas de espectáculos), ou os Metallica, com o acidente de aviação que foi Lulu (que foi odiado por quase todos, excepção feita a alguns patetas que vislumbram algo mais no meio daquele lixo não se apercebendo de que, se calhar, precisam de um par de lentes de contacto e/ou ouvidos). Myrkur é especial: quem regra geral não ouve metal ou sequer black metal adora-a, ao passo que os trvezões da cena desejam-lhe literalmente a morte – a pobre dinamarquesa já se fartou de receber mensagens e ameaças.
Vamos por partes. Quando surgiu, em 2014, Myrkur era “apenas” um nome; o autor ou autora daqueles sons refugiava-se sob a capa do anonimato e o que restava era a música de M, um álbum chatíssimo onde o vislumbre de uma boa ideia era prontamente sufocado pela sua péssima execução. Depois, surgiu o rosto; Myrkur era Amalie Bruun, atriz, “menina bonita” e coqueluche de um determinado nicho indie através dos Ex Cops. A própria descreve-se como uma miúda do black metal, mas as suas escolhas de vida não poderiam estar mais longe daquilo que é a personalidade intrínseca ao género. O black metal é uma alcateia: ao mínimo vislumbrar de um objecto estranho, o lobo rosna e uiva e morde.
É certo que toda esta ideia de “alcateia” é na verdade um mau serviço que o black metal, cuja principal prioridade deveria ser a do individualismo acima da pertença, presta a si próprio. A guerra – e a ideologia – contra os valores judaico-cristãos, contra a sociedade, contra a decadência urbana e/ou mental não deveria diminuir-se ao mínimo vislumbre de um “aliado”. A violência pode e deve ser una e generalizada. O Eu vale por muito mais que os Mesmos. Em poucas palavras, os trves, que na verdade são a alt-right primordial na medida em que não passam de um bando de nerds com gostos pouco saudáveis pelo Dungeons & Dragons, são tão ou mais palermas que o mundo que tanto criticam. Em ainda menos palavras, todas as subculturas são estúpidas e elitistas e era o que mais faltava eu ter de me vestir de certa forma para gostar de alguma coisa.
Mas ponhamos os óculos desses mesmos nerds por uns instantes e percebemos por que motivo Myrkur é tão detestada, ainda que a própria esteja no direito de fazer do black metal aquilo que bem lhe apetecer. Não há na sua música um traço de uma qualquer guerra. M era luminoso demais para poder ser considerado sequer black metal – aliás, é um paradoxo chamar-lhe “black” o que seja. Bruun refugia-se numa certa ideia de ambiente propagada pelo género para expôr “canções”, o que para alguém não familiarizado com o black metal parece uma excelente ideia, e para outros tantos que cresceram com ele é só o equivalente a botar uma gota de Chivas Regal num copo cheio de água gelada.
Claro que existem outros factores na equação: Myrkur odiada por ser uma mulher a fazer black metal. Regra geral, este mundo não é simpático para as mulheres (e estou a ser simpático com esta frase, e mesmo que uns quantos gostem de chutar uns pares de exemplos para provar que não é bem assim), e Bruun sofre ainda mais por não só ser mulher mas por ser vista como uma “mulher da pop”, de pronto colocando também um certo factor anti-capitalista na equação. É uma teoria que se aceita, que é lamentável, e que encontra eco no já famoso chavão no trends, no talent, no tits, no ass (ao qual achei alguma piada derivada do facto de ser uma pessoa horrível e sem vergonha de o ser). Por outro lado, é uma teoria apoiada pela Sónia Tavares dos The Gift, e se a Sónia Tavares dos The Gift te defende a tua música não pode ser senão uma merda.
O que os trvezões esquecem é que Myrkur não se tornou conhecida a partir do nada, dentro do metal. Attila Csihar, homem que comanda tanto medo quanto respeito, já disse boas coisas acerca da música da dinamarquesa. Kristoffer Rygg, dos Ulver, produziu-lhe o primeiro álbum, que contou ainda com gente dos Mayhem, Nidingr e Dodheimsgard. Em Mareridt – e já lá chegaremos – encontramos a presença do grande Randall Dunn e de Aaron Weaver, dos Wolves In The Throne Room (que, vá, para muitos também são black metal para hipsters). O que quer isto dizer? Simples: que ou todos estes nomes que ajudaram a formar o black metal como o conhecemos estão errados, ou que Amalie Bruun é mais trve que a puta da tua igreja a arder.
We need to talk about Mareridt. O segundo álbum de Bruun enquanto Myrkur explora outras possibilidades dentro da noção de ambiência pesada, apoiando-se menos no black metal e mais em formas folk, sendo supostamente inspirado pelos pesadelos que a própria teve ao longo de vários meses. Começa aí o primeiro falhanço (bom, no que concerne a Mareridt, pelo menos) de Myrkur: um álbum alicerçado em pesadelos não pode soar, por vezes, como um sonho bom e épico. Outra vez: falta negrume. Um porradão de negrume...
A folk surge em traços nórdicos, como no cântico que polvilha o tema-título e que não destoa muito, por exemplo, daquilo que o Varg (que queimou foi pouco) faz a espaços em The Ways Of Yore, até ver o último álbum de Burzum, tirando o facto de ser mais estridente. Poderia ser a chamada para algo muito mais depressivo e diabólico, espécie de calma antes da tempestade. Ao invés, é o setup para a piada que se segue: o black metal absolutamente patético e cliché (blastbeats, guitarras a ranger, lo-fi, etc. e tal) de “Måneblôt”, que mais parece ter sido escrita por uma criança de 14 anos que ouviu os Darkthrone pela primeira vez.
Talvez seja esse o grande mérito da música de Myrkur: ser capaz de nos fazer rir às gargalhadas, de elevar os nossos espíritos e a nossa disposição, apenas e só pelo grau de comicidade da coisa – um bocado como ver os Foo Fighters ao vivo. Porque o que encontramos em Mareridt, tal como encontrámos em M, é o retrato de uma artista que se esforça demasiado para ser “autêntica” e que falha miseravelmente no seu propósito, trocando-o pelo pastiche barato de quem sabe que o hype já vale por si só. Não faltam sequer ecos medievais substituídos por guturais e tremolo. E depois o sussurro angelical de quem julga ter uma voz capaz de se sobrepôr a miséria existencial de tudo o resto. O problema com Bruun é mesmo o de querer ser uma artista pop em modo extremo – como Elizabeth Fraser nos Cocteau Twins. Só que esta tinha, de facto, talento para a coisa.
Há um curto momento de redenção em “The Serpent”, porque soa não a black metal, mas ao doom segundo a batuta de uma géniazinha como Chelsea Wolfe (que até colabora neste disco e que tem em Hiss Spun um dos grandes discos de 2017). A redenção, que não é para sempre, esbarra na fofice (e outra vez nos Cocteau Twins...) de “Crown”, no momento hi-la-ri-an-te que é “Elleskudt” (que mais parece Arcade Fire misturado com Bathory) e na azeiteirice fenomenal e pseudo-folk-real que é “Kætteren”, ainda antes de Mareridt terminar com o ridículo de “Børnehjem” em que pura e simplesmente não se percebe se Bruun fez isto a sério ou se é apenas um momento troll auto-depreciativo. Em suma: Myrkur não deve ser, nunca, odiada por ser mulher. Não deve ser odiada por não ser autêntica. Não deve ser odiada por fazer ou não black metal. Deve, isso sim, ser odiada porque a sua música é absolutamente medíocre.