Nick Cave já nos acostumou a caminhar junto a ele numa busca pelo entendimento da dor, assumindo uma figura de santidade aliada a algum outro tipo de espiritualidade. O que apanhou todos de surpresa foi ter lançado, juntamente com Warren Ellis, o álbum de estúdio Carnage a 25 de fevereiro sem aviso prévio. E, por muito que a intuição fizesse esperar que se trataria de um disco centrado no tom negativo envolto na situação pandémica atual, chega-nos um trabalho belo e visceral onde se destaca uma profunda esperança.
É verdade que Cave e Ellis são um duo constante, ora pelo trabalho do primeiro com os Bad Seeds, ora pelas bandas sonoras que orquestraram juntos. No entanto, Carnage é o primeiro álbum assinado oficialmente por ambos sem esse último propósito. Mesmo assim, beneficia de vários aspetos cinematográficos e visuais, tanto nas letras descritivas como no forte mood setter do multi-instrumentista Ellis.
Depois da trilogia com os Bad Seeds – onde Skeleton Tree se foca na morte do filho de Cave e Ghosteen ambiciona chegar ao luto e questiona a vida em si –, Carnage sente-se como uma resposta à obrigação de colocar a vida em espera. Porém, há aqui uma positividade contemplativa, talvez possível após a introspeção dos últimos trabalhos. Esta “catástrofe coletiva” que vivemos, como Cave lhe chama, pode ser vista como uma forma de agarrar uma reflexão.
Assim que “Hand of God” começa, uma força desconcertante assombra-nos com paragens bruscas e sonoridades que nos fazem cair no abismo. Surpreendentemente, chega um som carregado de eletrónica meio alienígena, em que a religião é vista como uma força maior que, no fundo, nos deixa mais questões que respostas. A procura por propósito e explicação aparece em forma de sermão, que a meio se torna caótica pela repetição do título da faixa em coro.
“Old Time” surge como uma continuação natural da música anterior, com uma linha de guitarra aguçada e arranjos de violino tão interessantes como macabros. Aqui, já existe a vontade de voltar a um tempo onde é possível conduzir em direção ao pôr do sol, encontrando uma liberdade que foi perdida.
Em “Carnage”, faixa título do disco, está mesmo a homenagem a Ghosteen. Ainda parece uma reviravolta de acontecimentos lembrar o sinistro Cave em Murder Ballands, que agora está com uma aura de profeta. Como um abraço angelical, esta é a primeira música que nos acalenta e tranquiliza, porque o que estamos a passar pode ser visto como “only love with a little bit of rain”.
Em referência a outro tema que marcou fortemente o ano de 2020, “White Elephant” é a metáfora direta e política que mostra o apoio ao movimento Black Lives Matter, cheio de revolta pelos acontecimentos vividos no ano passado. Mas, mais uma vez, o tom dá uma volta de 180 graus. Após o nítido desprezo e raiva, chega novamente a procura pelo “kingdom in the skies”, tema recorrente durante o álbum inteiro. E esta música é mesmo um murro no estômago e um apelo à mudança com esperança pelo meio. Talvez esse reino seja alcançado com o nosso esforço, e Cave certamente acredita que isso se realizará.
Com tons de “Into My Arms”, “Albuquerque” é a balada do que ficou por fazer. É a referência direta ao isolamento sentido e à impossibilidade de ir a algum lado, qualquer lado. Já “Lavender Fields” é um retorno à calma e quase uma resposta à canção anterior. Após o pesar, vem a lembrança de que pode existir fé apesar do que foi perdido.
“Shattered Ground” e “Balcony Man” fecham este disco, ambas com momentos narrativos. Na primeira, a lua aparece personificada como uma mulher e uma situação tenebrosa de casal é descrita sob sintetizadores acompanhados pela voz angustiante de Cave. Na última, o nosso protagonista está pronto para se reerguer, levitando para lá da varanda. Talvez para chegar ao outro lado do sublime, terminando o disco com um êxtase cheio de felicidade, e até humor: “this morning is amazing and so are you/ And what doesn’t kill you just makes you crazier”.
Ora, se Nick Cave confessou que um ponto crucial para a criação deste álbum foi ter saudades do “momento de completa entrega” sentido nos palcos, talvez seja por isso que a audição destas faixas não se sinta completamente como um álbum de estúdio. Assemelha-se sim a uma oportunidade que tivemos de, sentados no canto da sala, ouvir dois mestres em plena transcendência da sua arte.
Carnage é um suspiro de alívio no meio da turbulência de 2020 e de 2021. Alívio por vermos o que já alcançámos, pelo fim próximo que quase conseguimos tocar e pela paz interior que é possível ambicionar. A dor está aqui e identificamo-la, já que tudo o que aparece neste disco esteve connosco. É um momento histórico que todos sentimos ao mesmo tempo. Apesar de estar envolto de temas de profundo pesar, Carnage também é uma pausa a este desespero, é o chegar da luz e a antecipação do fim deste caos.