Há algo de estranhamente gratificante em ouvir os Nothing neste atípico ano, onde o caráter distópico de uma devastadora pandemia se coaduna com a melancolia cortante do quarteto americano. Na verdade, chega a ser quase inacreditável o modo como estas dez composições de shoegaze revestidas de feeling emo formam o acompanhamento ideal para estes tempos de incerteza agonizante, quase como se tivessem sido escritas com a miséria da atual realidade em mente. É aí, nessa relação íntima que nasce do confronto com o vazio, com a depressão e o descontentamento que reside muito do fascínio do disco. Logo à primeira escuta percebe-se que o jogo apaixonante entre melodias delicadas e explosões emotivas se mantém inalterado e que o talento do grupo para criar atmosferas tão densas quanto acessíveis, mas sempre surrealmente envolventes, continua a ser um dos seus traços mais surpreendentes… Talvez por isso The Great Dismal funcione melhor como um todo, como se de uma peça contínua se tratasse, até pelo sentimento de banda sonora que emana desta coleção de sons e emoções.
“A Fabricated Life” marca então o início da “viagem” e arrepia pela maneira como a voz suave mas inquietante de Dominic Palermo convive com os arranjos angelicais da harpista Mary Lattimore e guitarras melódicas genuinamente vulneráveis; já “Ask the Rust” (que ocasionalmente recorda a distorção sonhadora dos Smashing Pumpkins no seminal Siamese Dream) representa o final apoteótico de uma experiência que tão cedo não se esquece – é um tema pesado mas também atmosférico, quase como um resumo de todo o percurso percorrido. Pelo meio vão surgindo outras composições de um encanto imediato e irresistível – “Say Less”, “April Ha Ha” e “Bernie Sanders” são três das mais impressionantes músicas aqui presentes e das melhores que os Nothing compuseram até agora. A primeira vive do fantástico jogo entre uma bateria dinâmica e guitarras que tanto soam distantes e frágeis (por vezes parece até que “choram”), como se tornam subitamente esmagadoras; a isto junta-se, a determinada altura, uma cativante melodia de baixo por parte do estreante (somente em estúdio) Aaron Heard, um dos novos elementos da banda ao lado do guitarrista/vocalista Doyle Martin, dos Cloakroom, e que confere uma atmosfera quase dançável a uma obra que nem sempre se alimenta dessa natureza.
Já a faixa seguinte cultiva uma deliciosa agressividade que traz à memória os Deftones sem deixar de soar a Nothing – mais para a frente, aliás, o grupo regressa aos habituais ambientes shoegaze, numa onda meio Ride, às vezes quase Slowdive –, pelo que o resultado final acaba por ser uma espécie de cruzamento entre dois mundos algo distintos, mas suficientemente parecidos para se abraçarem e formarem um só. Quanto ao single “Bernie Sanders” (será que o próprio já o ouviu?), é do mais orelhudo que os Nothing escreveram até agora, mas conserva na perfeição a essência shoegaze/emo pela qual são conhecidos… Dir-se-ia que as probabilidades de se tornar num fan favorite são honestamente animadoras. Se há defeito que se possa apontar ao álbum, todavia, é exibir “apenas” um aperfeiçoamento da fórmula e não um salto criativo particularmente significativo.
Ainda assim, The Great Dismal é um disco muitíssimo recomendável e que cresce a cada nova escuta – a sedutora “In Blueberry Memories” é um exemplo disso, vai cativando cada vez mais à medida que as constantes repetições fortalecem um amor que já estava destinado a florescer. É nesse estado de intensa ligação espiritual (como se pode apreciar música de outra forma?) que pequenos mas importantes pormenores se vão tornando progressivamente mais claros: a produção do álbum, por exemplo, é cristalina ao ponto de tudo ser percetível e cheia de força para que a energia não seja sugada e não se entre no campo da performance de estúdio aborrecida – era exatamente isso que os Nothing precisavam e aquilo que Will Yip lhes soube dar. Outro ponto alto são as letras fortemente introspetivas, por vezes a roçar o desconfortável de tão sinceras e “despidas” que são, e que fazem com que seja impossível não as sentir na pele – lê-las enquanto se descobre a música é o caminho para a apreciação completa. No fundo, um disco que encanta pela sua honestidade, pela força contagiante que carrega em si e que deverá agradar a qualquer fã da banda… E não só.