Com apenas 28 anos, o britânico Sampha Sisay estreia-se no mercado com o seu primeiro álbum de originais, Process. Já a madrugar no catálogo de 2017, o ano promete muito trabalho e atenção mediática ao jovem londrino, para não falar na interminável lista de concertos que o próprio terá de marcar presença ao longo do ano, num deles até nós próprios havemos de poder presenciar. Referimo-nos, claro, ao último dia do NOS Primavera Sound, que entrega até hoje um dos cartazes do ano de festivais em Portugal.
Quem não conhece Sampha, pode-se deixar cair pela ignorância do desconhecimento do artista. Pode ficar com a ideia de que este nome não terá potencial para nada mais do que um breve feixe de luz na actual geração de artistas no mercado, mas a verdade é que não podemos julgar um livro pela sua capa. Quem estiver interessado, descobrirá que em questão está um CV artístico admitidamente extraordinário em termos de contribuições e trabalhos, a colecionar até hoje co-produções ao lado de nomes como SBTRK, Drake, FKA Twigs, Kanye West, Solange e Frank Ocean, a não esquecer os dois EP’s lançados a cabo da Young Turks Records. Apesar de Sisay nunca ter tido uma oportunidade real de brilhar enquanto centro de atenções, acreditamos que o alcançou por fim, com o Process.
Algo que achamos digno e merecedor de um artista que preserva dentro de si uma paciência inigualável para dar tempo ao tempo e focar-se no que realmente interessa, a sua arte. Nos dias de hoje, vemos desvalorizados artistas que se deixam sucumbir pela arrogância desumana de representar algo que ainda não merece, e poder ver artistas cuja humildade e sinceridade perante a sua verdadeira estima, que é a música, entendemos que a modéstia será sempre algo muito mais valioso do que o gabarito. Nesse sentido, conseguimos colocar Sisay num pedestal ao lado de muito poucos. Mas poder ver Sampha crescer com cor e promessa num negócio standardizado para o acessível e pré-fabricado, é uma benção e uma amostra que a honestidade ainda é valorizada. Para além de esta ser uma merecida oportunidade para palcos maiores, recursos mais dignos e ambições mais altas, esta é sem dúvida a altura certa para um artista como o Sampha surgir num mercado saturado pela mediocridade mass-friendly e pelos muitos artistas a nível mundial que cresceram de tal forma injustificada que se distanciaram sem fundação individual e moral da independência musical, no sentido literal da palavra. Para além de saber produzir a sua própria música, Sisay consegue fazê-lo com estilo e distinção.
Process é um álbum forte no storytelling e tenta focar-se na apresentação do artista, descrevendo frequentemente as pequenas coisas que definem o inglês, a felicidade nos detalhes, o reencontro com a família e a nostalgia das melodias da infância. A expressão de Sampha é simplificada não só pela facilidade com que ele encaminha as batidas e a estética geral das músicas, mas também pela forma como consegue acumular camadas bem embaladas na cor e timbre da voz, com critério e ordem. Algo que inevitavelmente facilita bastante o ouvinte a entrar na visão do músico. A faixa de abertura, “Plastic 100ºC” é evidência clara disso. A música começa primeiramente com as cordas acústicas que fecham num loop contínuo intercaladas com a entrada do sample de fundo, simultaneamente fazendo deixa para o ritmo na voz de Sampha. As palavras são o instrumento da voz, e o ressoar do alongamento dos versos, em contenção com a descrição quase fotográfica, combina em perfeita sintonia com o acumular dos elementos no fundo da música. As vozes agudas contrastam com a batida e eventualmente encontram o desfasamento e ressurgimento das cores. Sampha admite o seu génio na sua natureza de transição, algo que é evidenciado em grande panorama na malha do álbum e segundo single oficial do projeto “Blood On Me”. Uma faixa que retrata a despida vulnerabilidade de Sampha em função de uma pronúncia e fluidez de discurso oriundo de dinâmica cinemática, a descrever um sonho onde o britânico narra uma perseguição de ansiedade entre o próprio e os receios que o acompanham desde jovem. Os medos, inseguranças, mentiras a incorporarem uma forma humana, em constante correria, e com a voz desesperada a chorar:
“Grey hoodies, they cover their heads / I can't see their faces I can't see, see, see, see, see / They knew me Look, sweat on my head / My heart’s thumpin’, drummin’”
Um resultado que só fica a ganhar pela forma como Sampha domina o ritmo acelerado e toma proveito desse sujeito para descrever um refrão pulsante e domado pela sua humanidade. Para além das duas primeiras faixas, o álbum acolhe um número de momentos memoráveis onde Sisay consegue domar a sua versatilidade no timbre e estrutura das músicas, algo que está em constante demonstração na elaborada forma de transcender os versos em algo muito mais real e sincero. O gospel desalmado deixa-se fluir como um ornamento de nostalgia na “(No One Knows Me) Like The Piano” e a “Under” é um sonho lo-fi com uma suposta femme fatale ao ritmo de uma batida despida a inclinar-se muito para o dub/trip-hop que lembra bastante as melodias adormecidas de Massive Attack.
“Incomplete Kisses” é sem dúvida a faixa mais melódica e complexa em termos de organização, e ironicamente a que mais condições mostra para ser o próximo single do álbum e potencialmente, com algum investimento da editora, um dia pertencer às nossas frequências de rádio. O balanço é maioritariamente positivo. Tomando em conta o risco que havia, Sampha conseguiu agarrar a oportunidade e criar algo único e promissor, que à imagem do artista desenha traços de personalidade incrivelmente diversos, desenvolvidos e inteligentemente ligados. Resta esperar e aguardar pelo dia 10 de junho, no Parque do Porto, para o último dia do NOS Primavera Sound para podermos ter o prazer de conhecer Sampha “cara-a-cara”.