O anterior Lush já prometia imenso, mas é com esta segunda proposta que Lindsey Jordan realmente se revela como escritora de (magníficas) composições, abraçando uma sonoridade mais pop e grandiosa, com recurso a sintetizadores e a paisagens orquestrais, sem descurar a honestidade emocional crua e pura que tão bem enfeitava a atmosfera da sua estreia. Basta escutar a beleza que é «Valentine», o tema de abertura, com aquele refrão apaixonadíssimo, orelhudo, maior que o mundo, em que Lindsey exclama “So why’d you wanna erase me, darling valentine?” para entender que este não é um simples registo de indie “fofo”. É algo bem maior e extraordinário, quase um coming-of-age para a jovem Lindsey, em que o atingir de uma clara maturidade artística a permitiu conceber um dos mais comoventes discos que 2021 viu nascer, seja de que estilo for.
Comecemos por mencionar novamente «Valentine», que soa tão fenomenal e poderosa que só dá vontade de permanecer eternamente no universo dessa canção, absorvendo cada segundo da sua intimidade lírica e do seu requinte instrumental. O modo como o refrão carrega uma explosão de distorção dramática, com as guitarras a reproduzirem a força das palavras cantadas com alma e sem filtros, num tom reminiscente dos Paramore, é simplesmente esplêndido e irresistível. Sem dúvida um dos momentos mais bonitos de um álbum já por si recheado deles. E o melhor é que a magia nunca se evapora, pois logo a seguir chega «Ben Franklin», uma malha gloriosa que contagia com aquela linha de baixo bem groovy e uma bateria pulsante mas descontraída – recordando um pouco St. Vincent, curiosamente –, mas sem abandonar a onda típica de Snail Mail. A música, mais uma vez, casa perfeitamente com as palavras, tornando-se evidente que os dois mundos se encontram interligados e se complementam até formar um todo imaculado, fluido e sedutor.
Não seria nada descabido dizer, na verdade, que a apreciação total só é verdadeiramente alcançada quando as letras são sentidas com a mesma intensidade que os sons, quando ambos são tratados como partes inseparáveis do mesmo puzzle biográfico. Nesse sentido, «Ben Franklin» constitui um dos capítulos mais fascinantes desta viagem, pois é precisamente aí que Lindsey aborda, de forma breve mas satisfatória, a sua passagem por uma clínica de reabilitação (“Post-rehab I’ve been feeling so small”, canta ela a certa altura), construindo assim uma óbvia relação entre o vício e o amor: ambos a consomem e ambos a fazem sofrer, com a única luz ao fundo do túnel a vislumbrar-se na doçura romântica de «Light Blue», composta para a namorada quanto tinha dezanove anos. Acima de tudo, ambos servem de inspiração para uma escrita confessional, por vezes dolorosa, mas sempre honesta e profundamente catártica (aliás, numa entrevista à Pitchfork, referiu mesmo que a conclusão do processo de escrita deixa-a sempre emotiva e “despida”, necessitando posteriormente de um tempo a sós para se recompor).
E eis que surge, nessa revelação de uma batalha interna constante, a tal honestidade de que se falava no início do texto, libertada de forma transparente para que todos a possam ver ou, porque não, refletir-se nela. Afinal, essa forte admiração foi, desde cedo, um elo de ligação entre a artista e a sua audiência, com muitos a encontrarem força e luz na pujança emocional das canções de Lush, ou mesmo na imagem assumidamente queer de Lindsey. No entanto, por muito que a fama lhe tenha oferecido o estatuto de “menina dourada” do indie, uma coisa é certa: Valentine é um álbum de luta e subsequente perseverança, o som de uma mulher a encontrar a sua voz e o seu lugar no mundo. Isso está bem patente na confiança que decora uma canção como «Forever (Sailing)», majestosa balada pop onde o espírito de Fiona Apple parece pairar a cada segundo, ou no delicioso indie rock de «Glory», onde o desenho atmosférico das guitarras e aquele refrão marcante formam algo incrivelmente cativante: ouve-se uma, duas, enfim, quantas vezes forem necessárias para o absorvermos. É o acompanhamento perfeito para um belo serão de contemplação emo – um pouco como o resto do álbum, diga-se de passagem. E não, o termo “emo” não é aqui usado de forma pejorativa; é antes o maior elogio que se pode tecer a alguém como Lindsey, que faz do desabafo e da discussão aberta de medos e fragilidades uma autêntica forma de arte.
Valentine é também um disco que tanto pode ser escutado de uma ponta à outra, sem interrupções – flui de forma agradavelmente orgânica e pacífica, nada soa fora do lugar –, como num formato mais “fragmentado”, selecionando-se a música, ou músicas, que melhor refletem o estado de espírito que se deseja imortalizar no registo de uma banda sonora única e intransmissível. Efetivamente, há um pouco de tudo para todos os gostos: se o mood obriga a algo meigo, afetuoso e acústico, então nada será mais recomendável que a gentileza folk de «Light Blue» e «c. et al» (esta última é um mimo para a alma e os ouvidos); se o coração pede algo mais ritmado e enérgico, então a supracitada «Glory» (que é realmente um hino, caramba, até as lágrimas escorrem) ou «Madonna» serão as escolhas mais acertadas. No fim, quanto mais o digerimos, mais pertinente a questão se torna: será Valentine um futuro clássico, e Snail Mail uma das mais reconhecidas vozes da sua geração? Tudo indica que sim.