É de dor, do mais agonizante e negro sentimento de melancolia, que nasceu o novo disco dos britânicos Svalbard, experiência sonora tão sufocante quanto catártica onde os mundos da música pesada e do experimentalismo arrojado andam de mãos dadas até formarem um só. Um cruzamento de sons e de sensações, espécie de confronto entre a fúria do post-hardcore com a frieza do black metal e a transcendência do post-rock, que já tinha sido explorado nos trabalhos anteriores e que aqui foi aperfeiçoado e deu origem a um dos mais apaixonantes e devastadores álbuns de 2020.
A composição de When I Die, Will I Get Better? (só o título é de uma frontalidade arrepiante, paira no ar como uma nuvem negra) foi tudo menos fácil e fluida: produto da depressão, no ano passado, da vocalista Serena Cherry, que a conduziu a uma desesperada inércia e que chegou a pôr em risco a conceção do disco, canaliza toda essa energia negativa na criação terapêutica de oito temas verdadeiramente tocantes, poderosos, que comovem a cada escuta; os berros e a intensidade com que são proferidos, a força das palavras que atingem a alma como uma saraivada de balas, tudo isso se encontra imbuído de uma arrepiante honestidade crua que se revela extraordinariamente irresistível. Não há momentos mortos, não existem oportunidades para o ouvinte se distrair e colocar este álbum como música de fundo, pois a paixão avassaladora que nele reside, impossível de ser contida, faz com que se sinta na pele cada segundo deste banho de emoções indomáveis.
A primeira música, intitulada “Open Wound”, conta com vozes angelicais e uma atmosfera etérea, mas não deixa de cultivar um palpável sentimento de “perigo”, como se cobrisse a chegada de uma tempestade iminente. É precisamente isso que acontece logo a seguir, com o tema a evoluir subitamente para uma violenta e frenética descarga de post-hardcore que recorda ocasionalmente a aura emotiva de uns Touché Amoré de tempos recentes, de quando a mais inconsolável perda era declarada através do som. Em “Click Bait”, furioso manifesto de Serena contra a exploração do feminismo por parte de sites em buscade cliques, a melodia volta a desaguar na mais pura e incontrolável agressividade, com vozes frágeis e melodias de guitarra tímidas e distantes, quase como uma brisa que refresca o rosto e rapidamente o abandona, a darem lugar a uma explosão de sons incrivelmente visceral, a uma partilha de energia que tem tanto de assustador como de belo. A melodia, na verdade, nunca chega a desaparecer – basta escutar as guitarras praticamente post-rock que fornecem um toque doce e poético a este impetuoso ataque –, mas a parede de som é de tal forma imponente que o tema acaba por constituir um dos mais pesados e desafiantes do disco, sendo que nem o breve regresso a paisagens mais melódicas, no final (que nada mais representa do que um curto desvio dos habituais caminhos da raiva), é suficiente para acalmar o coração; não quando antes ouvimos Serena berrar “FUCK OFF” como se não houvesse amanhã, num esplêndido middle finger à sociedade, que não se vê mas que se imagina com todo o pormenor – basta fechar os olhos e visualizá-la ali no estúdio, a gritar para o microfone como se a vida dela dependesse disso… E a julgar pela urgência com que comunica, talvez dependa mesmo.
“Throw Your Heart Away” continua a castigar cruelmente os ouvidos, com uma introdução repentina e implacável a fazer lembrar o melhor dos Converge, e mais uma vez a melodia floresce no tom nervoso mas contemplativo das guitarras e em passagens vocais suaves mas estranhamente inquietantes. Por esta altura, torna-se evidente que um dos segredos para o encanto desta obra, para além da simples qualidade das composições que deixaria muitos veteranos ruídos de inveja, é o modo como a dor não é somente exteriorizada através do peso ensurdecedor, mas também através da melodia angustiante e de um conteúdo lírico profundamente delicado. Pensa-se num disco como o maravilhoso Stage Four, dos já mencionados Touché Amoré, e no modo como as letras sobre a mãe do vocalista Jeremy Bolm, vítima de cancro, revestiam o álbum de uma garra que ia para lá da música para se instalar no campo das emoções, e é exatamente essa vulnerabilidade que sobressai no novo trabalho dos Svalbard. Nesse sentido, When I Die, Will I Get Better? não é apenas um discvo que parte da dor para a superar, é uma análise das várias formas como esta pode ser transmitida, e que soa pesado e brutal a todos os níveis mesmo com uma identidade orgulhosamente eclética (que até shoegaze inclui, ouça-se “What Was She Wearing?” e, sobretudo, “Pearlescent”).
No fundo, muito pode ser dito sobre este registo: que é mais um passo, bem significativo, por sinal, na evolução do quarteto de Bristol, confirmando-o como um dos mais excitantes, dinâmicos e aventureiros dentro da música pesada experimental; que muito tem para dizer, e que o faz de forma cuidada e inegavelmente relevante (volta-se a “What Was She Wearing?”, inspirada pelo caso de Tracy Brabin, que fala sobre o modo como muitas mulheres são julgadas pelas roupas que vestem e menos pelas competências ou pela validade das suas afirmações – é a misoginia a ser denunciada sem papas na língua). Acima de tudo, que funciona como a banda sonora perfeita para aqueles dias, ou até fases, em que a esperança começa a desvanecer, em que tudo parece ser inútil e onde o desejo é encontrar algo que corresponda a esse estado de espírito. É a dor como refúgio e plataforma para sobre ela triunfar… E é um dos melhores discos do ano, de qualquer género.