Finalmente vivemos numa época em que acordamos, em ritmos diferentes, para o facto de a mulher ainda lutar pelo seu pleno lugar na sociedade. Se para uns é uma mera bandeira, para outros é a vivência de um quotidiano. Não querendo cair numa discussão social, se por libertação ou por aproveitamento, o certo é que vozes mudas no que a este assunto toca, fazem agora ouvir-se efusivamente. In a Poem Unlimited poderia ser um desses objetos de discussão, mas não o é.
Mera coincidência temporal, U.S. Girls apresenta-nos em 2018, na era dos movimentos #metoo e semelhantes, um trabalho de um Ser quotidiano a simplesmente sê-lo no prisma e olhar de alguém que, por acaso, nunca soube viver outra vida além da de mulher. A realidade é que Meghan Remy, a pessoa por detrás deste projeto, não nos apresenta nada de novo relativamente ao que tem feito nos últimos tempos - como o seu sexto álbum Half Free - já nos tendo habituado a músicas criativas com uma forte incidência política e contestação social. No entanto, tal projeto tem passado totalmente ao lado do grande público, e até da crítica, e a cantora americana - apesar de residir no Canadá - tem experienciado uma projeção paulatina, mas bastante lenta. O reconhecimento generalizado, e mais que merecido, acontece com estas canções apresentadas este ano, onde a fórmula é a mesma, mas a refinação e o polimento estão num apogeu criativo sem precedentes, sendo ainda agraciado com o contexto sócio-temporal em que surge.
Para In a Poem Unlimited, U.S. Girls teve a necessidade de saltitar de estúdio em estúdio para encontrar os colaboradores certos que conseguissem concretizar a sua visão. Os mais proeminentes foram os canadianos The Cosmic Range, e o seu já habitué companheiro criativo e de vida Max Turnbull. Os primeiros garantiram a afirmação das sonoridades psicadélicas no álbum, já o segundo metia o dedo nos arranjos e construção melódica das canções, e ambos fluíam o seu trabalho através da visão clara e distópica de Meg. O resultado não podia ser mais curioso: cada uma das canções soa totalmente diferente, a remeter a estilos afastados entre si no som e nos intérpretes, compondo um álbum pop, excêntrico e experimental, onde a disparidade cria coesão. O fio condutor: a afirmação de uma vida enquanto mulher.
A referência nem sempre é óbvia ou imediata, mas como anteriormente foi referido, as faixas afastam-se entre si, e é nessa divergência que encontramos sempre, em cada uma das canções, a alma e celebração de uma artista consagrada, desde Stevie Nicks a Olivia Newton John. Portanto, das letras aos sons, tudo se respira, vê, e ouve como o sexo feminino. No entanto, por preguiça, ou mais provavelmente falta de termo, In a Poem Unlimited assume-se enquanto um álbum pop, mas tal designação poderá induzir o leitor em erro, uma vez que castra a abrangência musical do mesmo. Aqui há subversão de camadas, psicadelismo, batidas ácidas e ritmos alegres, sempre acompanhadas de letras certeiras, reais e bem elaboradas. É na produção e nas transações pensadas a régua e esquadro que a visão versátil de Remy tudo une, e faixa após faixa vamos adquirindo a cidadania deste universo U.S. Girls. “Velvet 4 Sale” é o toque de entrada para a aula, e no sumário escreve-se “Como matar um alvo masculino para raparigas”. Segue-se “Rage of Plastics” e abre-se as portas ao Soul americano, antes de entrarmos num paralelo a lembrar os Blondie ou uns No Doubt com o ska de “M.A.H”. A meio da jornada temos tempo para reviver, com um outro olhar, um dos maiores clássicos do cinema, e a eletrónica smooth de “Rosebud” soa-nos a uma maravilhosa fusão entre Björk e Sade. “Pearly Gates” - o single de apresentação - despe S.Pedro da figura divina que o pintaram e apresenta-o como representante de uma sociedade normativa, onde o homem é opressor (ou em outras palavras, sociedade real). Satírica e vibrante, a música flui numa ambiência funk onde as vozes ocupam o lugar de estandarte à indignação.
Tudo isto compõe In a Poem Unlimited, um álbum onde as vivências estão recheadas de dor e contestação, mas de um sentimentalismo cru, onde a exaltação e a epicização da história acontece através de uma musicalidade muito bem elaborada e polida. Há delicadeza na robustez e força aqui despejada por Meghan Remy, que, num compasso de dança embrulha uma melancolia contagiante. Sejamos claros, U.S. Girls com este trabalho merece figurar em qualquer lista de melhores do ano que se preze, tal o tamanho da qualidade aqui presente.