Dançar como o Napoleon Dynamite num domingo de manhã ao som dos Jackson 5 alemães dentro da carrinha mágica. E se isto parece confuso só o será para quem ainda não ouviu nada deles. Faz mal. Para todos os males, no mundo da música, há uma cura: ouvir. Neste caso, ouvir Vulfpeck. Para começar, qualquer sítio deve servir, com destaque para My First Car com “Wait For The Moment” ou Vollmilch com “Barbara”, “Adrienne & Adrianne”, mas qualquer sítio deve servir. Se qualquer sítio significa longa duração, apetrechado de vocalistas, fusões de estilos e boa onda, então o The Beautiful Game é o melhor ponto de partida.
Estes rapazes americanos criaram-se em 2011, no Michigan, e estão exatamente iguais desde 1970. Ou pelo menos é a ideia que fica sempre que fazem algo novo. Com a conservação das bases da música norte-americana, em Vulfpeck, vêm necessariamente a experimentação e inovação. Aquela que é das sonoridades mais frescas da década faz-se acompanhar por um forte respeito e orgulho respetivos às suas influências assumidamente funk e jazz. Acompanhada vem também a equilibrada e pujante frota de instrumentos - como já habituaram os seus fãs - não só pelos seus mestres eruditos, mas também por uma lista invejável de vozes convidadas.
Seguindo o mais lounge, menos espampanante e com ocasionais pontos fracos Thrill Of The Arts, os mitológicos pseudo-alemães apresentam-nos mais um LP. Cada lançamento sugere melhorias sónicas e estruturais que previamente nunca poderíamos imaginar. O álbum anterior não é, de todo, mau. Mas ficou um bocadinho menos bom quando nasceu o mais recente. É o análogo às “boas dores de cabeça” dos treinadores de futebol para os amantes de música e é indicativo da criatividade e evolução da banda ao longo dos seus cinco anos de existência.
Esta não é uma banda qualquer. É um conjunto que tem tanto de terreno como de imaterial. Aquando da sua formação, foi especulado com base em dados da Wikipédia que seriam um grupo de europeus que se teria conhecido numa aula de literatura alemã e descoberto o seu amor comum pela música funk. Daí ter nascido a “Vulf Records” liderada por um produtor, o “Vulfmon”, e a entidade nuclear do grupo: a banda, a matilha de lobos – Vulfpeck. Esses dados foram deliberadamente criados por Jack Stratton, membro-fundador da banda, e depois citados em diversas entrevistas, com o resultado esperado de entreter os próprios artistas. Em outra ocasião, quando quiseram saber quais as cidades com maior concentração de fãs que os quisessem ouvir ao vivo, em vez de uma simples votação, criaram um álbum completamente silencioso no Spotify chamado Sleepify, com hits sensacionais como “Z”, “Zz”, “Zzz” ou mesmo “Zzzzzzzzzz”. O objetivo seria cumprido antes de o serviço de streaming apagar o álbum. Com as receitas financiaram a “Sleepify tour”. Não há nada para não gostar acerca desta gente. Desde o conteúdo excelente e hilariante no Youtube, até à perfeição na mistura e produção sonora: eles sabem o que fazem. O único defeito será não terem passagem planeada por Portugal. Mas continuamos a poder ouvir os álbuns deles.
The Beautiful Game ganha pela estrutura e composição. Num avanço interessante, à erudição musical juntou-se a mestria lírica. E ambas formuladas com cuidado e sem pretensões ou pedantismo. Este álbum difere de todos os outros por apresentar uma evolução quase narrativa. Tem introdução, peripécias e desenlace. Confere até, em certos momentos, pequenas narrativas contidas em cada peça. Um caso primo é o da nova e melhorada “Conscious Club”, previamente publicada no Thrill Of The Arts como instrumental, ganha agora literatura. Arranca com “It’s my first night in Berlin and I wanna dance! Where should I go?” e conta a história engraçada de duas personagens femininas em busca de uma discoteca alemã cujo acesso é “verrry verrry complicated”. É o Conscious Club, onde tocam os próprios Vulfpeck.
Ao decorrer de tudo, música atrás de música, diversos estilos vão sendo abordados e remisturados. Além do funk, jazz e soul já recorrentes, aqui podemos ouvir bem mais experimentação na zona do disco, R&B e ainda mais brincadeiras pós-gravação, quase sempre com o sucesso pretendido, como se mostra na nova versão de “My First Car” intitulada “Margery, My First Car”. O sucesso de The Beautiful Game está em conseguir criar, misturar e organizar da melhor forma toda a complexidade inerente ao seu trabalho sem o encher de tiques de génio. Começa como deve e termina como deve, com uma gravação de um concerto ao vivo, dando a ideia de que acabámos de suar com todos os outros fãs num Conscious Club qualquer. Não deixa de ser genial, não deixa de poder ser interpretado ao mais minucioso pormenor, mas consegue ser de digestão fácil para quem só queira uma musiquinha para dançar.
O mundo Vulf acarreta música para ser ouvida ao vivo, mas que não desilude quando feita em estúdio. A verdade é que a mística da banda se conserva nas versões digitais. Estas são normalmente compostas de gravações pouco editadas e, a somar a isso, possibilitam o contributo (impossível de reunir em palco) de muitos e diversos artistas convidados. Destes destacam-se Antwuan Stanley, Christine Hucal e Laura Mace se quisermos ser seletivos e sintéticos. Porque, para todos os efeitos, no projeto Vulf não há ninguém que esteja a mais, nem ninguém que se sobreponha. O segredo está no baixo, e na bateria, e na guitarra, e nas vozes… enfim. O segredo está no espírito. É o entretenimento que motiva o The Beautiful Game e é entretendo-nos que ele faz sentido. Agora resta esperar que ele deixe de ser perfeito pelo lançamento do seu sucessor, e assim sucessivamente, na espiral menos monocórdica de que há memória. Aliás, não será uma espiral de todo. No que depender da mística será um “soul train” com destino ao céu do funk. Break it down.